Título: Vítimas da guerra no trânsito
Autor: Tahan, Lilian ; Campos, Ana Maria
Fonte: Correio Braziliense, 18/12/2011, Cidades, p. 29/30

As ruas do DF são palco diário de uma verdadeira guerra civil. Este ano, os acidentes já mataram 449 pessoas. São homens e mulheres de todas as idades, motoristas ou pedestres, que deixaram para trás histórias de tristeza e dor a milhares de famílias

Em 2011, a seca castigou. Foram 107 dias de sol. Mas neste sábado (26 de novembro) chove muito. São14h20, quando a campanhia toca três vezes e a sirene vermelha soa. No Corpo de Bombeiros, é aviso de urgência extrema. A equipe da Ursa (Unidade Rápida de Salvamento e Apoio), com sete brigadistas, se mobiliza. Um minuto faz a diferença entre a vida e a morte. Agora, um bebê de três meses precisa de socorro. O segundo sargento Régis Leonardo está de plantão. A missão dele é salvar Bruna*. Duas viaturas são acionadas. Uma é a ambulância. Os bombeiros nunca sabem a gravidade do que vão encontrar.

Numa cilada, a mãe bateu a porta do carro com o bebê, a bolsa e as chaves dentro. Ela pede socorro pelo 190. Ao mesmo tempo, procura um chaveiro. O quartel da Asa Norte atenderá a ocorrência. De lá, saem em disparada os bombeiros. O segundo sargento Régis Leonardo, 37 anos, opta pelo Eixão, onde o tráfego é mais rápido. Precisa alcançar a 106 Norte. Não por acaso, Leonardo é o piloto. Aprecia esportes radicais. Faz rapel, trilha, explora cavernas, pedala, corre. Atividades que exigem perícia e agilidade, dois atributos dele também ao volante. Há quatro meses, Leonardo chegou a tempo de evitar que uma mulher de 35 anos se atirasse da Ponte do Bragueto, no acesso ao Lago Norte.

Cinco minutos se passam desde que o veículo conduzido pelo sargento Leonardo deixou o quartel, na saída Norte. Ele pegou a via central no Eixão. Quando precisou sair da faixa presidencial, pista que separa as faixas de mão e contramão, acertou um sinalizador no chão (olho de gato). Pela primeira vez em 18 anos de profissão, perdeu o controle do que, até então, era o principal instrumento para salvar vidas. Em alta velocidade, o carro rodopiou, derrapou e acertou uma árvore na entrada da 206 Norte. No estacionamento de um bloco na 106 Norte, a avó de Bruna dizia para a filha: "Calma, o socorro está chegando."

É quando o alarme vermelho toca de novo no quartel da Asa Norte. Agora, o sargento M. Alberto se prontifica. As chaves do Ase (Auto Salvamento e Extinção) estão na ignição. Ele ainda não sabe, mas está a caminho de acudir um amigo. Mesmo experiente, Leonardo não pôde evitar o desastre. Foi ferido na região da cintura, no peito e nos ombros. Teve hemorragia interna e externa. Três bombeiros seguiam no mesmo carro. Tiveram ferimentos leves. E tentaram ressuscitar o colega.

O sargento M. Alberto soube no percurso que Leonardo estava ferido. Reconheceu o carro do amigo espatifado na árvore, justamente na altura da porta do motorista. Parou. O instinto é o de salvamento. Ao ver o estado do parceiro, recuou alguns metros. Apenas uma escrivaninha separa as camas onde os dois sargentos descansavam nos plantões de 24h. Eram amigos antes do juramento. As famílias se conheciam havia anos. Bombeiro desde 1993, Alberto reconhece os sinais que a morte emite. "Naquele momento, era o fim. Ele já tinha ido embora."

Prejuízos humanos Régis Leonardo é filho de Brasília. A mãe é dona Catarina. O pai, Arilton. Irmão de Milce Gabriele, Riva e Rodrigo, pai de Leonardo, 10 anos, e de Pedro Vinícius, 5, foi treinado para salvar vidas, mas tornou-se uma das 449 vítimas do asfalto em 2011 no Distrito Federal. Ele não deixou apenas os dois filhos ainda crianças. Fez órfãos os soldados de uma guerra urbana.

Todos os dias, alguém se acidenta, muitos ficam com sequelas, outros tantos morrem. Entre a vida e a morte, precisam de gente como Leonardo. São crianças com um futuro a construir. Dez, só neste ano, perderam essa chance. E idosos, que escaparam de câncer, controlaram a pressão alta, recuperaram-se de ataques cardíacos, mas perderam para a violência do tráfego. Entre janeiro e dezembro, 45 pessoas com mais de 65 anos trombaram com a morte no trânsito.

São pais de família, mães, maridos, mulheres, filhos e profissionais. Vidas interrompidas pela imprudência, pela má-conservação, pela fúria, pelo descaso, pela falta de educação, pela imperícia, por poucos investimentos e por desvios de dinheiro. Um conjunto de erros, cujos cidadãos pagam com a invalidez ou com a própria vida. Em 2011, a guerra no trânsito do DF matou 24 Josés, 16 Franciscos, oito Antônios. Foram 352 homens mortos nas ruas da capital brasileira. Entre as 86 mulheres, 11 Marias. De cada três pessoas mortas nas pistas, uma estava no auge da existência: são jovens entre 12 e 29 anos.

Os números que assustam o DF fazem parte de uma triste realidade nacional. Nos últimos dois anos, o trânsito no país fez 84 mil vítimas. Entre setembro de 2009 até hoje, os acidentes feriram 277 mil pessoas. Também provocaram danos financeiros, com cifras que começam em centavos e se avolumam aos bilhões. Segundo o Movimento Chega de Acidentes, que reúne entidades envolvidas com as questões do trânsito, em pouco mais de dois anos esse custo chegou a R$ 75 bilhões no Brasil, três anos de orçamento do DF.

Se é possível contar em centavos o custo dos acidentes, as feridas e as mortes deixam um prejuízo humano incalculável. É impossível estimar a falta que o bombeiro Leonardo fará para os seus filhos, os seus pais, os seus colegas e a toda uma comunidade. "Nos plantões, ele dormia com o rádio da polícia ligado. Ninguém faz isso, era um apaixonado", conta o colega Alberto. Leonardo estava sempre em alerta, mas naquele sábado chuvoso foi atingido por uma fatalidade que pode alcançar qualquer um dos 1,2 milhão de motoristas que circulam pelas ruas do DF.

Naquela tarde chuvosa, Bruna passou quase uma hora presa dentro do carro. Foi libertada com a ajuda de um chaveiro. A avó da garotinha apelou para Santo Expedito, que cuida das causas justas, urgentes e impossíveis. A do trânsito é uma dessas demandas que dependem da atitude humana e da ação do Estado. De hoje até quarta-feira, o Correio vai contar histórias de pessoas que se acidentaram por fatalidade ou quando um desses dois fatores falhou.