A disputa pela paternidade da transposição

Catarina Alencastro 

11/03/2017

 

 

Presidente Temer diz que obra do São Francisco pertence ao povo, mas ouve de populares gritos de ‘é Lula’

Ao inaugurar trecho da transposição do São Francisco, o presidente Temer rejeitou atribuir a obra ao PT: “A paternidade é do povo brasileiro.” Criticado, reagiu: “Por mais que eu seja espremido, só consigo dar doçura.” Em entrevista ao novo programa do jornalista Jorge Moreno, na Rádio CBN, ele leu poema que escrevera num guardanapo. A inauguração ontem do primeiro trecho completo da Transposição do Rio São Francisco, dez anos após o início das obras, converteu-se numa disputa pela paternidade do projeto. Iniciado ainda no mandato de Lula, com a ambição de se tornar uma das grandes marcas do governo do PT, o empreendimento teve seu Trecho Leste, que leva água ao interior de Pernambuco e da Paraíba, inaugurado pelo presidente Michel Temer. Ao dar início a eventos seguidos em três cidades do Nordeste, Temer afirmou que a paternidade da transposição é do povo. Horas depois da primeira declaração e de ouvir gritos gritos de “é Lula”, de populares, creditando a chegada das águas ao ex-presidente, calibrou a fala, dizendo que a obra foi executada nos últimos governos, que merecem aplausos, embora não tenha citado nominalmente seus antecessores.

— Esta é uma obra pensada desde o tempo do Império e executada nos últimos governos. Por isso eles (os oradores que o antecederam discursando na cerimônia), com a delicadeza e civilidade disseram: quem terminou a obra foi o Temer, mas isso passou por vários governos. Vários governos que merecem o aplauso de todos. Esta obra, se pudermos falar em paternidade dela, devemos dizer que a paternidade é do povo brasileiro — discursou.

OBRA PÚBLICA NÃO TEM DONO

A inflexão também aconteceu porque antes de subir ao púlpito, ouviu o governador da Paraíba, Ricardo Coutinho (PSB), dizer ao microfone que a “ex-presidente Dilma Rousseff foi responsável por 70% dos pagamentos obra”, e que foi Lula que deu início à construção. Antes dele, o vice-líder do governo senador Cássio Cunha Lima (PSDBPB) também fez referência aos governos petistas:

— A obra pública não tem dono. Dono é o povo. Dom Pedro foi o primeiro a falar em levar as águas do São Francisco para o povo do sertão. Depois veio Itamar, Fernando Henrique fez os primeiros estudos, depois veio o presidente Lula, que, com determinação e firmeza, iniciou a obra, com a participação do vice, José Alencar. Tenho que ressaltar o trabalho de Ciro Gomes. Depois veio Dilma Rousseff que por razões alheias à sua vontade atrasou muito a entrega das obras. Mas temos muito a agradecer ao presidente Michel Temer. Não fosse sua sensibilidade não estaríamos inaugurando essa obra.

Há alguns dias, Dilma passou a usar as redes sociais para “desmentir” que a obra ficou parada durante sua gestão, e apontou números que dão conta que 88% do empreendimento foi feito até o seu último dia de governo. Lula, por sua vez, planeja ir ao local da transposição até o fim do mês.

O clima controlado que Temer encontrou no primeiro evento do dia, quando assinou a ordem de serviço para a duplicação de um trecho da BR-230 e inaugurou um complexo habitacional inacabado do Minha Casa Minha Vida para uma plateia de beneficiários, não foi o mesmo encontrado na pequena cidade de Monteiro, onde a água do São Francisco chegou. Do lado de fora da estrutura montada, a população da cidade assistia emocionada à enxurrada que brotou sob a ponte do riozinho que correu ali em outros tempos, mas há muito havia secado.

“É Lula!”, gritavam alguns, enquanto tiravam fotos ou simplesmente contemplavam a água correndo onde há mais de cinco anos a chuva não cai. Perto do palco montado para a solenidade, mas do lado de fora e sob o sol, um pequeno grupo de cerca de 50 manifestantes causou incômodo, ofuscando a festa com gritos de “Fora, Temer”. O barulho dos manifestantes perdurou ao longo de toda a cerimônia. Alguns seguraram uma faixa e outros batiam panelas. Em seu discurso, Cunha Lima criticou os manifestantes, chamando-os de “inocentes úteis” que defendiam o governo “mais corrupto da história”.

Temer também mencionou os manifestantes em sua fala, tratandoos de “amigos”, e ironizou, dizendo que, como eles estavam no sol, ao fim do dia iriam tomar banho nas águas recém-inauguradas da transposição. O presidente encerrou seu discurso citando uma frase de Dom Hélder Câmara, comparando-se com a cana na moenda:

— Por mais que eu seja espremido, eu só consigo dar doçura.

A integração do São Francisco já custou mais de R$ 8 bilhões. O ministro da Integração, Helder Barbalho, prometeu entregar o restante das obras, o Eixo Norte que corta Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte, até o fim do ano. Ao todo, as obras devem beneficiar cerca de 12 milhões de pessoas. O projeto se estende por 477 km. O ministro disse que no dia seguinte à posse de Temer, foi chamado no Palácio do Planalto e recebeu a missão de entregar a obra em um ano. Ao discursar, ele recitou um trecho de “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga: “Que braseiro, que fornalha, nem um pé de plantação. Por falta d’água, perdi meu gado, morreu de sede meu alazão”. — Agora, vai ter água até para o alazão — disse. Em Brasília, parlamentares do PT no Nordeste reagiram à visita de Temer às obras de transposição.

— Não adianta eles quererem incluir o nome deles no DNA do projeto de transposição do São Francisco. O povo do Nordeste sabe que os governo do PT foram os melhores para o Nordeste. A transposição do São Francisco é a marca do olhar diferenciado que Lula teve para com o Nordeste brasileiro. Temer não conhece o Nordeste, não sabe nem onde fica o Nordeste. O Temer deveria ter compromisso de finalizar o eixo Norte, que está parado há 9 meses. Ele só está inaugurando o eixo Leste, que já estava quase pronto — disse o líder da Minoria na Câmara, José Guimarães (PT-CE).

“FESTA COM CHAPÉU ALHEIO”

O deputado Afonso Florence (PT-BA) se disse “perplexo” com a declaração de Temer de que as obras não têm paternidade.

— Uma obra tão robusta como essa não se conclui em meses. Não reconhecer a influência de Dilma e Lula é uma tentativa de ludibriar a opinião pública, e o povo nordestino sabe disso. O governo de Temer só tem agenda negativa, aí tenta transformar em agenda positiva as obras da antecessora dele — afirmou.

O deputado Luiz Couto (PT-PB) disse que o presidente tenta fazer “festa com chapéu alheio” e diz que, se Dima Rousseff não tivesse sofrido impeachment no ano passado, a obra já teria sido entregue:

— Muita gente que era contra e desdenhou, agora quer reivindicar. Tem uma expressão do povo nordestino que diz “não faça festa com chapéu alheio”. É isso que esse governo está querendo fazer. O dono do projeto é o povo nordestino, mas foi o Lula que começou a trabalhar para isso. E se a presidente Dilma não tivesse sido afastada, essa obra já teria sido entregue, como ela prometeu, no final de 2016. (Colaborou Júnia Gama)

“Esta é uma obra pensada desde o tempo do Império. Se pudermos falar em paternidade dela, devemos dizer que é do povo brasileiro” Michel Temer

 

O globo, n. 30532, 11/03/2017. País, p. 6