O Brasil permaneceu estagnado em 2015 na 79ª posição entre 188 países no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), informou ontem a ONU. É a primeira vez desde 2004 que o país não apresenta nenhuma evolução nesse índice.
Os três representantes designados pela ONU para apresentar o relatório manifestaram preocupação com as reformas da Previdência e trabalhista propostas pelo governo Michel Temer. Disseram ser necessárias, "mas precisam ser justas" e levar em conta a situação das pessoas mais vulneráveis.
No relatório, o PNUD estipulou um IDH de 0,754 para o Brasil, mesma pontuação de 2014, empatado com a ilha caribenha de Granada. O país segue entre aqueles com elevado grau de investimento. Mas ainda está longe de atingir 0,8 ponto, o que lhe conferiria um grau muito elevado de desenvolvimento humano pelos critérios do PNUD. Na América do Sul 0,8 ponto no índice, apenas chilenos e argentinos detém esse status.
O IDH brasileiro é o 5º do subcontinente, atrás de Chile (0,847), Argentina (0,827), Uruguai (0,795) e Venezuela (0,767). Os três primeiros estão à frente do Brasil em todos os indicadores analisados para a formulação do IDH. Já a Venezuela tinha em 2015 renda nacional bruta per capita e média de anos de estudo maiores do que as do Brasil, que supera a vizinha em esperança de vida ao nascer e anos esperados de estudo.
Porém, quando o IDH é ajustado à desigualdade, o Brasil perde 19 posições, ficando com um índice 0,561. É o terceiro país que mais perde posições nessa situação, atrás apenas de Irã e Botsuana. Na América do Sul, só três países têm o coeficiente de Gini, que mede desigualdade social e concentração de renda, pior do que o do Brasil: Guiana, Colômbia e Paraguai.
O IDH brasileiro é ligeiramente maior do que o da média da América Latina e Caribe (0,751). Entre os Brics, apenas a Rússia (0,804) tem um IDH maior do que o brasileiro. China (0,738), África do Sul (0,666) e Índia (0,624) estão atrás.
Segundo a ONU, apenas quatro dos 78 países à frente do Brasil no ranking (Andorra, Arábia Saudita, Ilhas Seicheles e Ilhas Maurício) tiveram processo de desenvolvimento humano mais acelerado do que o país entre 2010 e 2015.
Entre 1990 e 2015, o IDH brasileiro cresceu 23,4%, de 0,611 para 0,754. A expectativa de vida no país aumentou nesse período de 65,3 para 74,7 anos. A expectativa de anos de estudo subiu de 12,2 para 15,2 anos e a média de anos de estudo, de 3,8 para 7,8 anos.
As preocupações da ONU com relação às reformas no Brasil ocorrem no contexto do relatório deste ano, intitulado Desenvolvimento Humano para Todos. O documento leva em conta que houve um grande desenvolvimento no mundo nos últimos anos, mas alguns grupos foram "deixados para trás", como indígenas, trabalhadores rurais, pessoas com deficiência, minorias étnicas, pessoas do grupo LGBT, refugiados e mulheres. Para Niky Fabiansic, coordenador Residente do Sistema ONU no Brasil, esses são os grupos "mais vulneráveis que sofrem em maior medida com as crises mundiais".
"Estamos muito atentos a todo esse processo de reformas. O país precisa de várias reformas, e como toda reforma, [as do Brasil] precisam ser justas, que tomem em conta as pessoas mais vulneráveis, como as mulheres, os idosos em situação de vulnerabilidade, as populações que estão vivendo nas zonas rurais", disse Didier Trebucq, diretor do PNUD no Brasil. "As reformas laborais e de Previdência são importantes para a estabilidade macroeconômica e precisam ser reformas justas para todos."
Da mesma forma, Andrea Bolzon, coordenadora do RDH Nacional, disse que é preciso ter um olhar atento para pessoas de maior vulnerabilidade, para que não sejam prejudicadas" - caso, segundo ela, de trabalhadores rurais e mulheres. "Olhamos confiantes para que o país encontre uma forma de fazer a reforma [da Previdência] sem prejudicar as pessoas em maior vulnerabilidade", disse. "A mesma coisa em relação à reforma trabalhista. É preciso cuidado para que trabalhadores não sejam explorados. Confiamos que reformas serão feitas sem colocar em risco conquistas dos trabalhadores." (Colaborou Camilla Veras Mota, de São Paulo)
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Ligia Guimarães
O retrocesso social observado no Brasil desde 2015 é ainda pior do que mostra a estagnação do Índice de Desenvolvimento Humano, calculado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), afirma o pesquisador Marcelo Neri, diretor da FGV Social. "Os dados apontam um empate, que a gente não costuma ver como bom resultado, mas na verdade o que tivemos foi uma derrota grande. O retrato é pior quando você olha para indicadores mais abrangentes, e principalmente mais atuais".
Neri afirma que a discrepância se dá porque o cálculo do IDH leva em conta o comportamento do Produto Interno Bruto (PIB) per capita, mas, para medir o bem-estar social, o dado mais relevante é a renda, que teve queda expressiva. "A pobreza já aumentou muito em 2015 e provavelmente em 2016", afirma o pesquisador. Comparando as perdas por estrato social, Neri cita, com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), que enquanto a renda média do país caiu 7,04% naquele ano, a renda dos 5% mais pobres caiu 14%. A dos que ganham acima da mediana da distribuição de renda, que são os que recebem salários ou benefícios previdenciários corrigidos pelo salário mínimo, caiu menos: 3,8%.
"Embora se fale que a recessão é a pior da história sob a ótica do PIB, a recessão do ponto de vista social é ainda pior", diz.
Para Neri, o ano de 2015 foi um mau exemplo de como aplicar o dinheiro público sem amenizar efeitos sociais da recessão, ou tampouco fortalecer a economia. "Os grandes perdedores foram os pobres, e de onde veio essa perda? De um congelamento nominal do Bolsa Família por dois anos, de 2014 a 2016, quando a inflação alcançou dois dígitos", afirmou. Ele destaca que em 2015 a pobreza cresceu 19,33% no país, com o ingresso de 3,6 milhões de pessoas. Na estimativa da FGV, é pobre a pessoa que ganha aproximadamente R$ 210 per capita por mês, valor ajustado pelo custo de vida de cada região. "A extrema pobreza ela aumentou mais, 23%".
Na opinião de Neri, a falta de sensibilidade com os mais pobres não é ruim apenas do ponto de vista social: também prejudica a economia. O economista cita estudo que estima que cada real em gasto público com Bolsa Família tem impacto três vezes maior no crescimento econômico do que quando se gasta com Previdência "ou com FGTS, que foi a opção que foi feita agora". "O Brasil começou 2015 com recessão forte e penalizou os mais pobres. Aumentou o salário dos aposentados quando não tinha que aumentar."
Em vez de usar a rede de proteção social que o país já tem para "anestesiar" os mais pobres e a economia, o país fez o oposto ao ampliar o gasto previdenciário que, diferentemente do Bolsa Família, não tem foco na camada mais vulnerável da população. Para Neri, o melhor caminho, seria, por exemplo, conceder reajuste temporário ao benefício do Bolsa Família durante o período mais duro, para amenizar o retrocesso social dos mais pobres. "Não defendo um reajuste permanente, porque a crise fiscal é grande. Mas o Brasil deu um reajuste permanente para a Previdência, o que não faz o menor sentido do ponto de vista de pobreza, nem macroeconômico".
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Os dados de estagnação do desenvolvimento humano revelados ontem pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) são um alerta de que os problemas sociais e macroeconômicos não devem ser tratados como questões isoladas uma da outra, como historicamente ocorre no Brasil, na visão do coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper, Naercio Menezes Filho.
"Não podemos tratar a macroeconomia e a questão social como coisas separadas. O Brasil fica alternando entre má gestão macroeconômica e boa gestão social e boa gestão macroeconômica e má gestão social", afirma Menezes, que diz que os números, que colocam o país na 79ª posição no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) entre 188 países, são bons motivadores a uma reflexão sobre o futuro do país, em termos de decisões sobre política econômica e reformas.
Na visão de Menezes, o país precisa superar o desafio de conciliar o planejamento de estratégias sociais e macroeconômicas, sob o risco de não resolver problemas básicos de desenvolvimento humano, ou evitar crises econômicas recorrentes. "A gente tem que conjugar duas coisas. A preocupação macroeconômica, com a estabilidade, a inflação baixa, o ajuste fiscal. Mas não podemos deixar de lado a questão social. Você tem uma pobreza ainda muito grande comparada com outros países", afirma o economista, que destaca que o país não alcançará patamar mais alto de desenvolvimento, ganho de renda e crescimento econômico se não desenvolver as habilidades da população, desde o nascimento até o mercado de trabalho. "O Brasil tem dever de dar oportunidades para as pessoas".
Menezes afirma que, dado o tamanho da recessão, a estagnação do IDH pode até ser encarada como boa notícia. "O fato de termos conseguido sustentar em termos de média de anos de estudo e a expectativa de vida foi, na verdade, um dado positivo. Poderíamos esperar até uma queda do IDH", diz. Menezes calcula que, em 2016, o PIB per capita foi quase 10% menor do que era em 2013. Ele estima que, supondo crescimento próximo a zero em 2017, o PIB terá que crescer 2% ao ano até 2025 para que o PIB per capita retorne ao nível de 2013.
O que impediu um retrocesso social maior, na visão do economista, foi o fato de que o país seguiu avançando em indicadores de educação e saúde, o que compensou a expressiva queda do PIB per capita. "Agora se a gente parar de melhorar em educação e saúde e cair o PIB per capita, aí o IDH despencar", diz.
A estimativa de Menezes é que IDH do Brasil permaneça estagnado em 2016. "Essas coisas mudam muito lentamente. Não vai ter um avanço dramático da educação, nem uma queda dramática na expectativa de vida".
A comparação internacional do IDH, que coloca o Brasil abaixo de países menos ricos, como Venezuela, reflete a imensa desigualdade social, diz o economista. "O Brasil tem parcelas grandes como a rural e áreas do Nordeste, por exemplo, que são muito pobres. Isso que puxa a gente para baixo", diz Menezes. "Na hora de fazer as reformas o país precisa pensar muito nas famílias mais pobres. Não pode de maneira nenhuma diminuir as oportunidades que as pessoas têm".