CARNE FRACA, PROPINA FORTE

Katna Baran

Thiago Herdy

João Sorima Neto

18/03/2017

 

 

PF desarticula quadrilha suspeita de liberar e comercializar produtos impróprios para consumo

 No que classificou de maior operação de sua história, a Polícia Federal deflagrou ontem, em seis estados e no Distrito Federal, a Operação Carne Fraca, para desarticular uma organização criminosa formada por fiscais agropecuários federais e empresários do agronegócio, que, em troca de propina, liberavam produtos sem fiscalização — como salsicha, mortadela, carnes, aves e ração para animais de estimação. A PF também encontrou assinaturas de certificados para exportação sem checagem feita no local. Cerca de 1.100 policiais federais cumpriram 309 mandados judiciais nos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Goiás e no DF. A 14ª Vara Federal de Curitiba expediu 27 pedidos de prisão preventiva, onze de prisão temporária, 77 de condução coercitiva e 194 de busca e apreensão.

 

Na investigação, que durou dois anos, a PF detectou, por meio de escutas telefônicas, irregularidades cometidas pelos frigoríficos, como uso de produtos cancerígenos em doses altas, reembalagem de produtos vencidos, carne contaminada por bactérias e imprópria para consumo humano.

Segundo o delegado da PF em Curitiba, Maurício Moscardi Grillo, responsável pela operação, pelo menos 40 empresas estão sendo investigadas por participação no esquema. Há grandes frigoríficos, como a JBS, dona das marcas Seara, Friboi e Swift; e a BRF, que detém as marcas Sadia e Perdigão. Executivos dos dois grupos foram presos. Houve buscas nas residências dos investigados e também em algumas unidades das empresas. Foram presos o funcionário da Seara Flavio Cassou; André Luiz Badissera, diretor da BRF; e o funcionário do Ministério da Agricultura Daniel Gonçalves Filho, que foi superintendente regional no Paraná e é apontado como o chefe da organização criminosa. Só no início da semana que vem, a PF divulgará um balanço das prisões. O gerente de Relações Institucionais do Grupo BRF, Roney Nogueira dos Santos, teve sua prisão decretada, mas está no exterior.

A Justiça determinou, ainda, o bloqueio de contas bancárias e aplicações financeiras de até R$ 1 bilhão, além de sequestro e arresto de outros bens de 46 pessoas.

A JBS informou em nota não haver menção a irregularidades sanitárias na empresa e ressaltou que nenhuma unidade foi interditada. E afirmou que, “ao contrário do que chegou a ser divulgado, nenhum executivo da empresa foi alvo de medidas judiciais.” A JBS disse estar comprometida com a qualidade dos produtos e o aprimoramento das práticas sanitárias. “A JBS não compactua com desvios de conduta e tomará todas as medidas cabíveis.”

Também em nota, a BRF informou que está colaborando com as autoridades. Reiterou cumprir os regulamentos referentes à produção e comercialização de seus produtos, e afirmou não compactuar com práticas ilícitas. “A BRF assegura a qualidade e a segurança de seus produtos e garante que não há nenhum risco para seus consumidores.”

A operação teve origem na denúncia de um fiscal agropecuário federal do Paraná, Daniel Gouvêa Teixeira, que sofreu punições de seus superiores por não participar do esquema de corrupção. Ele estava lotado na Superintendência Federal da Agricultura no estado do Paraná, como chefe substituto do Serviço de Inspeção de Produto de Origem Animal (Sipoa), e constatou que funcionários do órgão eram transferidos para outras unidades de atuação para atender ao interesse de fiscalizados, sempre “empresas de grande capital”, afirmou.

Segundo o delegado Moscardi, havia várias estratégias para reduzir o custo de produção, como injetar água na carne para aumentar seu peso. Mas ele não soube dizer a quantidade de alimentos impróprios que chegou aos consumidores. Também não esclareceu se as irregularidades ocorreram durante o período da investigação ou se foram pontuais.

Um dos casos mais graves descritos por Moscardi envolve carnes contaminadas com salmonela, da BRF, que iam para a Europa, mas acabaram barradas. Segundo o delegado, a empresa tentava explorar uma nova rota de entrada no continente por Roterdã para fugir da fiscalização. A BRF não comentou este caso específico.

O delegado contou que propina não era apenas em dinheiro, mas também em alimentos:

— Os próprios fiscais reclamavam da qualidade dos produtos em conversas interceptadas.

Em outro alvo da operação, o frigorífico Peccin Agroindustrial Ltda., baseado em Curitiba e dono da marca Italli Alimentos, foram observadas algumas das fraudes mais graves. A PF gravou, em março de 2016, uma conversa entre Idair Antonio Piccin, dono do frigorífico, e Nair Klein Piccin, sua mulher e sócia. O casal discute o uso de carne de cabeça de porco na fabricação de linguiças, o que é proibido por lei.

“Nair: ‘Ele quer te mandar 2 mil quilos de carne de cabeça. Conhece carne de cabeça?’ Idair: ‘É de cabeça de porco (...). E daí?’ Nair: ‘Ele vendia a 5, mas daí ele deixa a 4,80.’ Idair: ‘Mas é proibido usar carne de cabeça na linguiça…’ Nair: ‘Tá, seriam só 2 mil quilos’.” Procurada, a Peccin não retornou o contato. A operação Carne Fraca terá profundo impacto na economia. Os piores casos descritos pela Polícia Federal são de frigoríficos pequenos do Paraná, mas os grandes produtores também são suspeitos de corromperam fiscais. No caso da BRF, para manter aberta uma unidade, a de Mineiros. O Ministério da Agricultura fala em separar o joio do trigo, mas as carnes já se misturaram.

Os casos embrulham o estômago, mas há muito tempo se sabe que era preciso melhorar e ampliar a fiscalização da carne. Ontem, o Ministério da Agricultura começou a agir, afastando funcionário e interditando frigoríficos, mas a população brasileira já está exposta aos riscos e haverá reflexo na exportação. Mercados que foram abertos com dificuldade vão criar barreira fitossanitária. O Brasil é o maior exportador de carne e em duas décadas superou todos os concorrentes.

O mercado interno é o maior cliente da carne brasileira. De tudo o que é produzido anualmente, o Brasil exporta menos de 20% do que produz de carne bovina, 18% de suínos e 30% de frango. O resto é para o mercado interno. E para nós sempre foi destinado o produto de pior qualidade. Desde ontem se sabe em detalhes o que isso significa: carne estragada, ácido usado para maquiar o produto, fiscais recebendo dinheiro de frigoríficos, bactérias no produto que é vendido para o consumidor brasileiro. É estarrecedora a descrição do que havia em alguns pequenos frigoríficos.

A exemplo da Lava-Jato, a apuração começou como um caso local e encontrou conexão nacional através das duas maiores empresas, a BRF e a Seara, do JBS. Um fiscal — afastado por tentar fiscalizar o Peccin, um frigorífico local paranaense — fez a denúncia. A Polícia Federal, ao investigar, pediu ao juiz Marcos Josegrei o monitoramento telefônico. Com a escuta, os investigadores confirmaram que os dois funcionários mais graduados do Ministério da Agricultura para o assunto, o superintendente Daniel Gonçalves Filho e a chefe da fiscalização Maria do Rocio do Nascimento, estavam envolvidos inteiramente no caso. Encontraram irregularidades também em Goiás e Minas, e em grandes frigoríficos que se valiam da prática de manter relações promíscuas com fiscais do Ministério da Agricultura para que seus produtos fossem aprovados.

O gerente de relações institucionais e governamentais da BRF, Roney Nogueira Santos, tinha poderes para escolher e substituir fiscais que iriam atuar na empresa. “Para isso, alcança dinheiro a servidores públicos, remunera diretamente fiscais contratados, presenteia com produtos da empresa e se dispõe a auxiliar em campanha política”, diz o juiz Marcos Josegrei. E junto com ele, e com os mesmos métodos, atuava o diretor da empresa André Luis Baldissera. Na Seara, do grupo JBS, quem fazia esse trabalho de relacionamento com os fiscais era Flávio Cassou. Ontem, o JBS proclamou em nota que não havia diretor sob ação judicial. Isso não melhora a situação.

A BRF é a fusão entre Sadia e Perdigão, forma encontrada para salvar a Sadia, que tinha quebrado com manipulação cambial em 2008. Muito dinheiro público foi transferido para a empresa através dos empréstimos subsidiados para financiar a fusão, tapar o rombo da empresa. O JBS que, entre as suas muitas aquisições financiadas com os empréstimos do BNDES comprou a Seara, foi o frigorífico que recebeu o maior volume de empréstimos e de aporte de capital do banco para ser o grande campeão nacional na segmento de carne. O que a operação Carne Fraca mostrou é a promiscuidade da relação com funcionários públicos para afrouxar a fiscalização.

O JBS investiu pesado em marketing para tentar separar-se dos demais produtores do país dizendo que sua carne era 100% fiscalizada. “Carne confiável tem nome”, dizia a propaganda da empresa. O próprio presidente da JBS, Joesley Batista, em suas entrevistas sempre ressaltou o fato de que a carne do grupo JBS estava submetida à fiscalização federal, mais rigorosa, e que grande parte do produto no Brasil tinha fiscalização estadual, municipal, ou era de abate clandestino. Agora se sabe que a empresa, neste caso da Seara, preferiu comprar os fiscais para que eles fossem “gente boa” durante a fiscalização.

O globo, n.30539 , 18/03/2017. Economia, p.19