Sangria

Luis Fernando Verissimo
12/03/2017
 
 

Não entendo por que o próprio Tribunal Eleitoral não pode esclarecer quanto da dinheirama foi declarada e aprovada por ele e de quanto ele nem sentiu o cheiro

AOperação Lava-Jato foi descrita por um dos seus alvos como uma “sangria” a ser estancada antes que causasse mais estragos. Se está em andamento, nos corredores sombrios do poder, um processo de abafa da Lava-Jato sem dar muito na vista, só sabe quem frequenta os corredores sombrios. O recém-empossado ministro da Justiça declarou que não tocará na Polícia Federal e não intervirá na Lava-Jato. Em outras palavras, que vai deixar sangrar. Quando eu era guri, na Idade Média, cruzava-se dedos para dizer uma mentira, o que absolvia o mentiroso. Ninguém observou os dedos do novo ministro enquanto ele falava. Mas dizem que ele é um cara legal e fará o que falou, ou não fará o que se teme.

O “Jornal Nacional” dá os nomes dos investigados pela Lava-Jato e por outras operações, mas nunca deixa, corretamente, de procurar representantes dos citados ou os próprios citados para ouvir suas defesas. Com a enxurrada de novos denunciados aparecendo todos os dias e com as delações se multiplicando, pode-se prever que em breve todo o “Jornal Nacional” será tomado pelos nomes dos acusados e pelas suas explicações, não sobrando tempo nem para a meteorologia com a Maju.

As explicações se repetem, sem muita variação. Todos são inocentes. Nada do que receberam foi para o caixa dois ou para seus bolsos, tudo foi para o caixa um, devidamente registrado pelo Tribunal Eleitoral. Não entendo por que o próprio Tribunal Eleitoral não pode esclarecer quanto da dinheirama foi declarada e aprovada por ele e de quanto ele nem sentiu o cheiro, ou se tem competência para fazer isso, ou não quer se envolver. A esquerda, ainda ressentida com a condução coercitiva do Lula e a gravação e o vazamento ilegais de conversa da Dilma, então na Presidência, pode se consolar com a ideia de que Moro e seus justiceiros desencadeiam um ataque sem precedentes ao capitalismo de compadres brasileiro. Não se pode nem dizer que a Odebrecht, as empreiteiras e outras empresas flagradas comprando favores de políticos sejam anomalias, e o propinato, uma perversão a ser exorcizada para que os negócios voltem à normalidade. A normalidade, no capitalismo de compadres brasileiro, é a promiscuidade do capital predador com o poder à venda, e assim tem sido há décadas.

O que vem depois da Lava-Jato? A que normalidade se volta, uma nova ou a de sempre? E até que ponto a sangria será tolerada? (...)

 

O globo, n. 30533, 12/03/2017. Colunas, p. 15