ENTREVISTA - João Doria

Cristiane Agostine, Ricardo Mendonça e Maria Cristina Fernandes

25/02/2017

 

 

O prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB), fez uma transição amigável com o antecessor, Fernando Haddad (PT), mas afirma que a falta de estoques de medicamentos levou à necessidade de recorrer a doações de laboratórios para normalizar o funcionamento das farmácias das Unidades Básicas de Saúde. A receita do município estabilizou-se depois de um ano de sucessivas quedas, mas o recurso à iniciativa privada se sucede em todas as esferas da administração pública e envolve empresas que têm contenciosos com a prefeitura. O prefeito defende a licitude das doações e demonstra irritação ao ser indagado sobre eventuais contrapartidas.

Duas semanas depois de voltar dos Emirados Árabes Unidos e Catar, onde foi propagandear o programa de privatizações do município, prepara mudanças no Plano Diretor para viabilizá-lo e a modelagem das vendas e concessões, sem descartar isenções de impostos para investidores. O Plano Diretor atual, que tem vigência prevista de 16 anos, foi aprovado pela Câmara de Vereadores em 2014.

Tucano com imagem mais positiva do que a de presidenciáveis do PSDB, Doria cita pesquisas que referendam visibilidade nacional, mas jura lealdade ao governador paulista Geraldo Alckmin, tucano. Às 22h da quinta-feira, quando terminou esta entrevista, o prefeito recebeu o diretor do instituto Paraná Pesquisas que levou informações sobre a taxa de conhecimento de Doria no país.

Ao final do encontro, interrompido para a transmissão ao vivo de um programa em rede social com o cantor Lobão, o prefeito, irritado, chegou a ameaçar encerrar a entrevista quando indagado sobre eventuais conflitos de interesses na propaganda de empresas doadoras que são patrocinadoras da Lide empresa. A seguir, a entrevista:

 

Valor: Como essa viagem que o sr. fez ajudou a definir a formatação das privatizações e das concessões do pacote que será enviado à Câmara em março?

João Doria: Até abril, todo o pacote estará na Câmara. Lá [na viagem] consegui perceber a temperatura correta do programa de desestatização e o sucesso que poderia ter. Os maiores fundos soberanos do mundo estão em Abu Dhabi, Catar, Doha e também em Dubai. A receptividade foi acima da minha melhor expectativa. Além de termos um bom pacote de itens privatizáveis e de concessões, a perspectiva do Brasil ajudou. Essa foi a boa notícia. Até liguei para o presidente [Michel] Temer para contar. Visitamos sete fundos, mais três bancos de investidores e três megainvestidores individuais. São muito bem assessorados. Têm analistas e especialistas em economia da América do Sul, da América Central, que olham o Brasil com novas e boas perspectivas. A visão deles é que em 2018 o Brasil volta a crescer. Eles estão mais convencidos disso que alguns economistas brasileiros.

 

Valor: O interesse deles em relação a Interlagos vai implicar em mudança no Plano Diretor?

Doria: Se necessário, vamos mudar. Tudo que for em benefício da cidade, que for positivo para geração de empregos e impostos, desenvolvimento social e econômico, temos que reanalisar. Nós não podemos estabelecer um programa de congelamento, que impeça a geração de empregos numa cidade com 2,2 milhões de desempregados, e 3 milhões de subempregados. Não se pode dizer que tem uma pedra que é irremovível enquanto as pessoas têm fome e necessidades. Temos de ter capacidade de reagir.

 

Valor: O que vai mudar no Plano Diretor?

Doria: Deixe primeiro eu acabar de responder sobre o programa de desestatização. Este programa envolve duas privatizações: Interlagos e o Complexo do Anhembi. Todos os demais 53 itens serão em regime de concessão. Interlagos vai preservar o autódromo, o kartódromo e o parque, de acesso público e livre, só que melhorado. Você tem de ter o investimento imobiliário, permitir ali a construção de empreendimentos habitacionais ou unidades mistas que viabilizem a compra num valor atraente e que dê o retorno desse investimento. Senão quem vai comprar Interlagos? Apenas para promover torneios automobilísticos não se viabiliza. Dos 365 dias por ano, em 360 têm atividade no autódromo de Abu Dhabi. Todos esses fundos são das oligarquias que detêm o poder nos Emirados e também no Catar, mas são administrados como empresas privadas. O que coloca de pé o complexo do Anhembi para ser privatizado? Nada diferente do que a própria gestão do Haddad já tinha desenhado: empreendimento imobiliário. Tem duas torres de uso misto, comercial e residencial, dentro daquele complexo, que paga toda a operação

 

Valor: A modelagem prevê isenção de impostos?

Doria: Não está definido ainda. Isso é o [secretário de Desestatização] Wilson Poit que está cuidando. A [consultoria] McKinsey que está nos ajudando a preparar todos os programas, isso exige um cuidado enorme.

 

Valor: Leilão?

Doria: Provavelmente leilão, que é a forma que pode oferecer o melhor resultado e mais transparente. Já as concessões são diferentes. É por um período determinado. Vamos concessionar o Pacaembu, cemitérios, parques, os mercados, os 16 mercados, os sacolões, os 29 terminais de ônibus. São 55 lotes. É o mais amplo programa de privatização múltiplo já realizado no Brasil.

 

"Convenci os empresários a devolver a São Paulo um pouco do que ganharam na cidade. Que mal há nisso?"

 

Valor: E o Bilhete Único?

Doria: Também. É uma concessão, que é superatrativa. São 15 milhões de usuários. Isso vai ser uma das nossas "blue chips". E que hoje dá despesa. Hoje representa para nós mais de R$ 250 milhões de despesas de ônibus, vai passar a ser uma fonte de geração de receita extraordinária e de muito mais eficiência. E certamente com menos fraude do que hoje tem.

 

Valor: Há o entendimento de advogados de que a comercialização desses dados pela prefeitura seria ilegal e fere o marco civil da internet porque as pessoas que usam ônibus e forneceram dados pessoais não foram consultadas sobre a comercialização dessas informações...

Doria: [O secretário de Comunicação, Fabio Santos, interrompe e diz que isso será definido na modelagem e terá de ser submetido à Câmara dos Vereadores].

 

Valor: Qual é o volume de recursos que o senhor pretende movimentar nessa operação de 55 concessões e privatizações?

Doria: Em torno de R$ 7 bilhões de ingressos para a prefeitura. É uma estimativa moderada-otimista.

 

Valor: Esse valor era estimado apenas para Anhembi e Interlagos. Houve uma reestimativa?

Doria: Os outros serão concessões. Podemos até ultrapassar [o valor]. Podemos ter bons valores em alguns casos, como no caso do Bilhete Único. Os cemitérios também podem ser uma boa surpresa. Mas é preferível ficar um número moderado-otimista. O fundo vai ser o gerenciador da operação e o destinador de recursos. Serão nominados bancos, representantes da prefeitura nos leilões. A Bovespa vai nos assessorar sem custo prévio, terá participação sobre o resultado advindo dos leilões, que serão todos feitos na BM&F-Bovespa.

 

Valor: E o que o senhor pretende fazer com essa receita?

Doria: Destinar integralmente para a saúde, educação, habitação e infraestrutura. Vamos constituir um fundo por lei.

 

Valor: Como está a arrecadação da prefeitura?

Doria: Em janeiro foi igual à do ano passado. E fevereiro, me disse o [secretário de finanças] Caio Megale também teve o mesmo desempenho, o que, para nós, já é uma situação bastante positiva.

 

Valor: Estancou a queda, então?

Doria: Esta é uma boa notícia. O mercado começa a apresentar os primeiros sinais de melhora. Tênue, mas de uma perspectiva mais para o positivo e com uma certa dose de otimismo.

 

Valor: No segundo semestre o sr. atualizará a planta de valores do IPTU, como prevê a lei?

Doria: Sim, mas não vamos aumentar além da inflação.

 

Valor: O sr. recebeu a prefeitura com superávit, a arrecadação está mantida, mas fez cortes sociais...

Doria: Tivemos algumas decepções, mas não quero classificar isso de maneira enfática porque a nossa relação com o Haddad, com a gestão dele, foi bem construída, mas tivemos algumas situações na área da saúde e da educação que nos preocuparam. E na área do transporte também.

 

Valor: Se havia superávit e a receita se mantém por que cortes nas áreas sociais? O senhor prometeu foco nos mais carentes, mas agora até corta pela metade o programa de distribuição de leite.

Doria: Faltaram recursos. A realidade é essa. A prefeitura não comprou medicamentos em setembro. Deixou um 'gap' na compra de medicamentos para as UBS, mas não vou transformar isso numa estigmatização política para ficar acusando a gestão Fernando Haddad, até porque isso não vai resolver nada. Temos que viabilizar aquilo que é necessário. Por isso fui pedir apoio aos laboratórios. Pedimos R$ 120 milhões e conseguimos. Agora tem a tal da burocracia. Precisa ter aprovação do Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária) para liberar os impostos, não faz sentido pagar 19% sobre R$ 120 milhões para doar remédios.

 

Valor: Os medicamentos terão um prazo de validade menor que um ano. Quem ficará responsável pela incineração e descarte dos medicamentos vencidos?

Doria: A Secretaria de Saúde. Não haverá descartes. Esses medicamentos são suficientes para atender três meses.

 

Valor: O sr. gravou e divulgou vídeo em rede social que causou polêmica, aquele em que faz propaganda da Ultrafarma num ambiente público, ao lado dos secretários...

Doria: Não citei a Ultrafarma, apenas as vitaminas. Que mal tem isso?

 

Valor: Não tem um conflito de interesse, o senhor mostrando as marcas, os medicamentos?

Doria: Qual é o conflito de interesse?

 

Valor: A Ultrafarma é patrocinadora do Lide [Grupo de Líderes Empresariais, empresa fundada por Doria e hoje controlada por seu filho] e o sr. está fazendo propaganda num ambiente público...

Doria: A empresa está fazendo doação, não tem dinheiro público. Não estamos gastando um centavo com eles. A vitamina é o de menos, eles estão fazendo uma ampla doação de medicamentos dentro desse programa. Qual é o mal? Não tem conflito de interesse [O prefeito eleva o tom de voz e ameaça encerrar a entrevista].

 

Valor: O sr. tem usado seu bom relacionamento com empresários para programas como a limpeza da ponte estaiada e a doação de carros para a segurança das marginais. Como pretende regulamentar essa relação com os empresários?

Doria: Damos total transparência a esta relação. As doações têm chamamento público e são explicitadas no Diário Oficial, sem nenhuma contrapartida. São R$ 120 milhões em medicamentos, automóveis, motocicletas, 40 mil peças de roupa para pessoas em situação de rua, um milhão de itens de produtos de higiene e limpeza pessoal doados pela Unilever, 15 mil fraldas doadas pela Procter & Gamble para as UBS, tudo dentro daquilo que a legislação permite. Nenhum problema nisso.

 

Valor: Mas a Cyrella, por exemplo, que está doando a reforma dos banheiros do Ibirapuera, tem um contencioso com a prefeitura na questão do parque Augusta...

Doria: Não há contencioso conosco. Há uma circunstância em discussão no Ministério Público.

 

Valor: A prefeitura é parte interessada. O senhor já sabe o que vai fazer com o parque Augusta?

Doria: Estamos discutindo com o Ministério Público. Não há nenhuma decisão ainda. Isso é um tema herdado, não foi criado nesta gestão. Veio da gestão anterior, está no Ministério Público e nós estamos dialogando. Não tem conflito de interesse.

 

Valor: O sr. disse que haveria doação de agências bancárias ociosas para construir creches. Qual foi a resposta dos bancos?

Doria: Eles fizeram opção pelo Funcad (fundo de amparo da criança e adolescente). Estão fazendo seus investimentos. Teremos algumas poucas [agências], mas foi bem inexpressivo. Fizeram opção pelo fundo que será destinado para o programa das creches. Isso foi uma decisão dos cinco maiores bancos: Itaú, Santander, Bradesco, Caixa e Banco do Brasil. A expectativa é de arrecadação de R$ 120 milhões.

 

"Minha lealdade ao governador Geraldo Alckmin é plena, é o meu candidato à Presidência, quero prévias para o governo"

 

Valor: O que leva um empresário, em um momento de crise, dar milhões de reais para a prefeitura?

Doria: Tenho sensibilizado. Hoje [quinta-feira] pedi para a Associação da Indústria Textil uniformes para a guarda-civil metropolitana, para a CET, para as unidades de atendimento nas 31 prefeituras regionais e eles vão doar. E por que vão doar? Porque tenho dito a eles que eles ganharam dinheiro a vida inteira em São Paulo, legitimamente, de forma correta, mas o maior mercado de consumo deles é a cidade de São Paulo. Devolver um pouco do que tiveram nesse mercado significa estabelecer um limite além da fronteira do lucro e do benefício que sempre tiveram. Consegui convencê-los nesse sentido. Não temos recursos para oferecer e nem perspectiva de curto e médio prazo de oferecer qualquer contrapartida. Tenho oferecido bons argumentos. O que a Procter & Gamble pode ter de contrapartida por oferecer fraldas?

 

Valor: O sr. não acha natural que na era da Lava-Jato a imprensa se torne mais vigilante em relação a essas relações entre o público e o privado?

Doria: Não sou Lula, não sou o PT, não sou o Dirceu. Não tenho Lava-Jato. Tem que perguntar para quem é do PT, não para mim.

 

Valor: Mas a Lava-Jato também traz investigações sobre nomes do PSDB, PP, PMDB...

Doria: Mas eu não sou essas pessoas. Eu não tive financiamento, nem podia ter, de construtora na minha campanha. O maior financiador fui eu mesmo.

 

Valor: Hoje [quinta-feira] houve uma ação policial com feridos na região da Cracolândia. O senhor esperava esse grau de conflituosidade? O que vai fazer para a região?

Doria: A informação que tive foi que traficantes foram aprisionados pela PM e houve uma reação. Para a região, estamos fazendo reuniões com promotoria, OAB, Tribunal de Justiça, PM, Polícia Civil, Guarda Civil Metropolitana, Polícia Federal, secretaria de saúde do Estado, do município, Ministério da Saúde.. São doze instituições envolvidas. (...) Não vou me antecipar.

 

Valor: A que o sr. atribui a última pesquisa que trouxe nomes do PSDB mal postos e o ex-presidente Lula na liderança para 2018?

Doria: É uma pesquisa que reflete situação momentânea, mas é muito cedo para perspectiva. Sempre a pesquisa só retrata o momento e estamos num momento muito distante da eleição

 

Valor: O senhor aparece em algumas pesquisas em uma situação para a disputa presidencial mais favorável que o senador Aécio Neves (MG), Alckmin e o senador José Serra (SP), todos tucanos. É avaliação de imagem. O que acha?

Doria: Nas últimas semanas várias perguntas têm sido feitas na mesma linha, até por conta de outras pesquisas, Instituto Paraná, blogs. Evidente que eu recebo de maneira positiva, sempre afirmativo estar bem avaliado pela população. Mas não sou candidato à presidência, não sou candidato ao governo do Estado, fui eleito para ser prefeito.

 

Valor: De que maneira a doença do senador Serra mudar o quadro sucessório em São Paulo?

Doria: É muito cedo para essa definição. Defendo prévias, como fizemos nas eleições municipais para permitir que os filiados do PSDB no Estado possam fazer indicação através do voto direto e soberano de quem eles entenderem que deve disputar pelo PSDB a candidatura ao governo.

 

Valor: Se o governador pedir para o sr. disputar, o sr. aceitaria?

Doria: Não estou avaliando isso agora. A minha lealdade ao governador é plena, é o meu candidato à presidência da República. Certamente ele não faria esse pedido. Ainda que fizesse, neste momento não seria adequado proceder esse tipo de análise.

 

Valor: O sr. disse que todo pichador é bandido. Esse tipo de afirmação, no momento em que a política brasileira está tão inflamada, não incita ainda mais a radicalização?

Doria: Não, é um fato. Bandido é bandido. Vai atenuar o fato de que bandido é bandido, em nome de uma razão política? Desde quando falar a verdade é incitar?

 

Valor: Há vários tipos de transgressores. Um sonegador é um transgressor e nem por isso é chamado de bandido...

Doria: Chamo e reafirmo: pichador é bandido. Tem pena de até um ano de prisão. Crime ambiental. E agora responde também por outro crime, judicial, pena de R$ 5 mil se for flagrado e R$ 10 mil mais o custo de recuperação.

 

Valor: Como o sr. analisa a estreia de Donald Trump?

Doria: Não quero falar de Trump. Só de São Paulo e do Brasil.

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4204, 25/02/2017. Política, p. A7.