Doação de órgãos como obra de misericórdia
José Medina Pestana
09/02/2017
Líderes de religiosos estão em posições decisivas para expressar suporte teológico categórico e dissipar a resistência a incorporar conceitos recentes na interpretação das suas escrituras, quando envolvem questões advindas da atividade contemporânea da sociedade. O transplante de órgãos é uma dessas questões e representa um dos maiores avanços da medicina nas ultimas décadas: órgãos ou tecidos de uma pessoa distinta são incorporados e adquirem função normal em novo receptor.
Assim, milhares de pessoas recuperaram a visão com um transplante de córnea, readquiriram qualidade de vida sem diálise após transplante de um único rim, ou tiveram sua vida salva por um transplante de coração, fígado ou pulmão – órgãos que, doentes, não lhes dariam vida por período superior a um ou dois anos. A grande maioria desses procedimentos é realizada com órgãos doados após a morte, fruto da intenção manifesta em vida ou após autorização formalizada pelos familiares.
Atos em benefício dos semelhantes estão na base e no credo das religiões. Embora a maioria dos conselhos ou líderes das crenças predominantes se posicione de maneira favorável aos transplantes e considere a doação post mortem um ato nobre, persistem conflitos quanto ao conceito de morte encefálica, bem como acerca da necessidade de integridade do corpo para as cerimônias fúnebres ou para alcançar benefícios espirituais.
Entre os mais de 2,3 bilhões de seguidores do cristianismo, tanto católicos romanos como ortodoxos e protestantes, predomina a decisão favorável à doação, o que contribui para que a grande maioria dos transplantes seja realizada em países onde predomina a fé cristã. Testemunhas de Jeová, que não aceitam a transfusão de sangue, não se opõem ao transplante de órgãos. Para a maioria dos pastores evangélicos, a doação de órgãos é um ato de amor e de generosidade. Para o judaísmo a doação de órgãos é um ato de justiça e misericórdia, embora existam seguidores contrários, por não aceitarem a violação do corpo ou o diagnóstico de morte encefálica como o fim da vida.
A maioria do 1,3 bilhão muçulmanos considera a integridade do corpo como condição para o acesso à vida eterna, assim o número de transplantes é pequeno nessa comunidade. Entretanto, o Conselho Muçulmano Britânico apoia a doação, dando prioridade ao mérito do ato de salvar vidas. Os mais de 1 bilhão de seguidores do hinduísmo atribuem mérito espiritual à doação de órgãos, mas ainda contam com pequeno número de transplantes, dado o incipiente desenvolvimento dessa atividade nas suas regiões. O xintoísmo, predominante no Japão, e o confucionismo, na China e na Coreia, são crenças que preconizam o sepultamento do corpo inviolado e, embora apresentem legislações que normatizam a doação, número reduzido de transplantes é realizado nesses países. Os mesmos conflitos existem para os seguidores do budismo.
Entre todas as religiões e crenças, foi a Igreja Católica que mais categoricamente acatou o diagnóstico de morte encefálica como fim da vida e reconheceu o mérito do ato de doar órgãos. O papa São João Paulo II, na encíclica Evangelium Vitae, de 1995, estabeleceu que entre os atos de heroísmo cotidiano “merece particular apreço a doação de órgãos feita, segundo formas eticamente aceitável, para oferecer uma possibilidade de saúde e até de vida a doente por vezes sem esperança”. Em pronunciamento ulterior, durante o Congresso Internacional de Transplantes, em 2000, em Roma, afirmou que “a morte da pessoa é um evento único, que consiste na total desintegração do complexo unitário que a pessoa é em si mesma, como consequência da separarão do princípio vital, ou da alma, da realidade corporal da pessoa”. E reconheceu “a constatação, segundo parâmetros bem determinados e em geral compartilhados pela comunidade científica internacional, da cessação total e irreversível de qualquer atividade encefálica (cérebro, cerebelo e tronco encefálico) como sinal da perda da capacidade de integração do organismo individual como tal”.
É legítimo entender que, sendo a doação de órgãos post mortem fruto de forte espiritualidade, num momento de perda e sofrimento familiar, muitas vezes inesperado, a dimensão do desprendimento e solidariedade justifica sua inclusão entre as “obras de misericórdia”. Definida nos primórdios do cristianismo como a virtude de ter compaixão e aliviar o desconforto do semelhante, a misericórdia é reconhecida pela Igreja Católica como ações que fortalecem a espiritualidade, expressa em sete obras corporais: 1) dar de comer, 2) dar de beber, 3) vestir os nus, 4) visitar os doentes, 5) visitar os presos, 6) acolher os peregrinos e 7) enterrar os mortos. Estas são listadas em paralelo com sete obras de misericórdia espirituais: 1) dar bom conselho, 2) corrigir os que erram, 3) ensinar os ignorantes, 4) suportar com paciência as fraquezas do próximo, 5) consolar os aflitos; 6) perdoar os que nos ofenderam e 7) rezar pelos vivos e pelos mortos. Para enfatizar a importância espiritual da prática sistemática desses atos nos nossos dias o papa Francisco proclamou 2016 o ano do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, incluído entre as ações que celebraram os 50 anos do Concílio Ecumênico Vaticano II.
A inclusão da doação de órgãos entre as “obras de misericórdia” atenderia a uma necessidade contemporânea em harmonia com as escrituras desse concílio, cuja essência foi abrir a Igreja para a modernidade. O papa Bento XVI em 2008 pode ter antecipado essa proposta ao definir a doação como “um ato de amor e uma testemunha genuína de caridade que se estende além da morte”.
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PROFESSOR TITULAR DA UNIFESP/ ESCOLA PAULISTA DE MEDICINA, É MEMBRO DA ACADEMIA NACIONAL DE MEDICINA. E-MAIL: MEDINA@HRIM.COM.BR
O Estado de São Paulo, n. 45040, 09/02/2017. Espaço Aberto, p. A2.