Política de Trump pode ignorar queixa brasileira sobre aço

Assis Moreira

02/03/2017

 

 

O Brasil tende a ser afetado pela política comercial que Donald Trump ameaça levar adiante, que ignora regras internacionais e acena com sanções unilaterais contra parceiros para obter ganhos para os produtores americanos, avaliam diferentes fontes.

A avaliação do governo e do setor privado brasileiro é que o país não é problema para os Estados Unidos, porque a importação de produtos superou em US$ 4,3 bilhões o total vendido ao mercado americano no ano passado.

No entanto, o impacto sobre o país pode começar já com uma queixa de Brasília contra os EUA na Organização Mundial do Comércio (OMC), por causa de sobretaxa imposta a produtos siderúrgicos brasileiros. Ela tende a ser completamente ignorada pelo governo Trump, pela sinalização dada pela Casa Branca em documento enviado ontem ao Congresso americano.

O Brasil trouxe a reclamação à OMC em novembro do ano passado, alegando que sobretaxas em produtos exportados pela CSN e pela Usiminas foram aplicadas de forma abusiva e ilegal diante das regras internacionais.

Na fase de consultas, realizada pouco antes do Natal, em Genebra, a delegação brasileira apareceu com 145 perguntas sobre as investigações feitas por Washington. Os americanos, porém, deram respostas evasivas ou simplesmente ignoraram os questionamentos.

A mensagem implícita dos EUA já em dezembro, ainda durante o governo de Barack Obama, era a de que não entrava em discussão sobre como aplicava instrumentos de defesa comercial - sobretaxa antidumping ou antisubsídio -, afim de proteger a indústria americana.

Agora, o governo brasileiro deve decidir se recorre à etapa seguinte, que é pedir um painel (comitê de especialistas) para examinar sua queixa contra os EUA. Só que a Casa Branca sinaliza que vai usar instrumentos de defesa comercial sem levar em conta as regras internacionais - portanto, com bastante flexibilidade.

Ou seja, o Brasil pode abrir painel contra os EUA, o painel pode dar razão ao Brasil, os EUA podem até seguir os requisitos processuais e recorrer ao Órgão de Apelação. Mas no fim do processo, se o Brasil vencer a disputa, Washington tende a ignorar a decisão que não for de seu interesse.

A avaliação na cena comercial é de a administração Trump quer submeter o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC aos interesses americanos. No apagar das luzes do governo Obama, Washington tomou uma decisão sem precedentes, ao vetar a reeleição de um juiz coreano para o Órgão de Apelação da OMC, cujas decisões teriam irritado Washington.

Na investigação contra produtos siderúrgicos brasileiros, os EUA atacaram uma série de programas acusados de subsidiar o setor, como IPI, ex-tarifário, Reintegra, Desenvolve Bahia, Finame etc. "O Brasil considera que as medidas dos EUA têm uma incidência sistêmica grave e efeito desfavorável sobre a exportação de mercadorias para os EUA", segundo a queixa inicial brasileira na OMC.

A situação é grave para os parceiros comerciais dos Estados Unidos, porque tanto poderão ser atingidos mais facilmente por sobretaxas, como terão menos recursos para se defender. Para Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores, só a ameaça de retaliação por parte dos EUA já causa dano no comércio, pelas incertezas que lança entre exportadores e importadores.

De passagem pela OMC, onde participou de debate sobre propriedade intelectual e saúde, Amorim recordou momentos de ameaças de retaliação americana contra produtos brasileiros, incluindo o eventual uso da famosa "seção 301", que dá à Casa Branca autoridade unilateral para retaliar outros países que Washington considerar que impõem barreiras injustas contra produtos americanos.

No início do governo Sarney, a lei da informática brasileira levou os EUA a adotarem sanção contra uma lista enorme de produtos brasileiros, incluindo aço e suco de laranja. Com a sutileza que caracteriza os americanos, a lista foi anunciada dia 7 de setembro, quando o Brasil comemorava a independência. A sanção não foi implementada, depois de muita conversa.

Mais tarde, em 1988, os EUA pressionaram o Brasil por causa da lei de patentes, que queriam mudar, e que conseguiram com as pressões ao longo do tempo, conforme Amorim.

Washington brandiu de novo contra o Brasil sua "seção 301" em 1994, ameaçando retaliar por causa de propriedade intelectual. Amorim foi a Washington discutir com o representante comercial americano, Mike Kantor, e em seguida veio a Genebra perguntar ao diretor-geral do então Gatt (antecessor da OMC) como podia contra-retaliar os americanos, já que o acordo da Rodada Uruguai sequer estava em vigor. No fim das contas, a ameaça não foi concretizada.

Na visão de Amorim, a nova política agressiva prometida por Trump demonstra que o Brasil fez bem em não ter concluído a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). "Fico aliviado, porque se o Brasil tivesse assinado [a Alca] estaria hoje como o México, com uma dependência enorme."

Para o ex-ministro, se Trump seguir a linha que promete, o Brasil pode correr risco de novo na área de propriedade intelectual. O país usa às vezes implicitamente flexibilidades do Acordo de Trips, quebrando patente para produzir remédio mais barato. "Tem outros remédios que vão aparecer [para quebra de patente]", diz. Deu como exemplo um tratamento para hepatite C, que custa US$ 70 mil nos EUA. No Brasil, fica em US$ 7 mil, e no Egito, apenas US$ 300.

Para Amorim, só uma parte da indústria brasileira está ansiosa por acordo comercial com os EUA. "Na hora que um problema de saúde pública for afetado, o que vai acontecer?", indaga.

O governo Trump informou ao Congresso que quer dar prioridade a negociações bilaterais com países-chave, em vez de negociações globais na OMC. A Casa Branca avisa que vai usar todos os instrumentos disponíveis para arrancar concessões dos parceiros, para beneficiar os produtores americanos. Um negociador, ironicamente, indagou se isso significava usar forças militares nas negociações comerciais.

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4205, 02/03/2017. Brasil, p. A3.