A dor que não cabe entre quatro paredes

Caio Barretto Briso 

08/03/2017

 

 

Vítimas de violência batem à porta de delegacias comuns e especializadas em busca de proteção contra seus algozes, que podem até ser outra mulher

Ela entra cabisbaixa, de cabelos presos. Enquanto aguarda atendimento no balcão, olha para a calçada, com medo de quem passa na Rua Visconde do Rio Branco, no Centro. Está em pânico desde sexta-feira, quando foi espancada ao sair de uma igreja evangélica. Um policial logo se aproxima, e eles conversam por alguns minutos. Ao ir embora, vira para trás e indaga: — E se eu for assassinada? J. foi agredida por ordem da ex-mulher do seu noivo, com quem está há nove meses. Um homem que dizia ser filho de bicheiro a atacou por trás. Ela levou um soco nas costas, outro na nuca, até que apareceu a ex do noivo. Junto com o agressor, ela derrubou J. na calçada e depois a chutou na cabeça e na perna direita. Até a ambulância levar a vítima para o Hospital Estadual Getúlio Vargas foram 45 minutos de espera.

— Desmaiei com as porradas, acordei com uma desconhecida segurando minha mão. Cheguei à emergência com hipotermia, pois estava chovendo. Não tinha maqueiro nem neurologista no hospital — conta, sem conter as lágrimas. — Estou tomando remédios para depressão que me deixam dopada, mas amo meu noivo, tenho que aguentar. Rezo para Deus tirar a mágoa do coração dessa mulher.

J. procurou na segunda-feira uma das 14 Delegacias de Atendimento à Mulher (Deam) do estado. Entrou hesitante na unidade do Centro, uma das três da capital. Mas não encontrou abrigo, pois essas delegacias registram apenas ocorrências que se enquadram na Lei Maria da Penha, criada em agosto de 2006 para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. J. terá que ir a uma delegacia comum, apesar de sua história ter começado dentro de casa.

Na Deam, enquanto esperam atendimento, as vítimas trocam poucas palavras: — Foi o marido? — indagou uma. — Não, meu filho — respondeu. X. sentia-se culpada ao denunciar o próprio filho, mas não viu outra alternativa após o homem de 25 anos jogar um capacete na sua cabeça. Diagnosticado com bipolaridade, ele interrompeu o tratamento psiquiátrico por conta própria aos 14, quando começou a fumar maconha. Pede dinheiro à mãe toda semana, mas ela resolveu dar um basta.

— Comecei a dizer “não”, e ele detesta ser contrariado. Disse que ia me matar, esfolar minha cara, e jogou o capacete com força — conta a senhora, moradora da Baixada Fluminense. — Ele está acabando com minha vida. Para falar a verdade, é a terceira vez que venho à delegacia. Era um bom menino, mas não duvido que ele tente me matar mesmo.

Segundo a juíza Maria Aglaé Tedesco Vilardo, com 24 anos de experiência em vara de família, as ocorrências mais comuns contra mulheres que chegam à Justiça são de lesão corporal cometida pelo marido:

— Já fiz plantão em que recebi 76 processos de violência contra mulher num único dia, entre 11h e 18h. Infelizmente é atribuído um valor diferente à palavra da mulher. Em muitas denúncias, não há testemunhas, em outras não há provas. É possível que a mulher esteja inventando? Sim. Mas é provável? Não, não é.

EXPULSA DE CASA E SEM OS FILHOS

A. saiu da delegacia aos prantos. Como as outras mulheres naquela tarde, teve dificuldade para falar sobre o ex-marido, que a arrastou pelos braços e a jogou no chão, para fora do apartamento que os dois compraram juntos, em Ipanema. Ex-modelo, ela vivia uma história dos sonhos, aos olhos dos outros. Casou-se com um estrangeiro que conheceu no exterior e teve dois filhos. Demorou a perceber que estava nos braços de um dominador.

— Ele não me deixava ter amigos, nem uma vida própria. Acabou com minha autoestima. Quando eu não queria sexo, ele ficava possesso e forçava tanto que eu fechava os olhos e pensava “isso é só um corpo, é só um corpo".

Quando descobriu que seu ex-marido era bissexual, o amor que ainda sentia desapareceu.

— Era metido a machão, até homofóbico. Meus filhos cresceram ouvindo ele gritar comigo, mas, na frente dos outros. Era uma farsa. Meu filho mais velho está do lado do pai. A mais nova fala em morar comigo, mas ele não me deixa mais vê-los, nem falar ao telefone. Quando tento ir à casa onde moram, ele chama a polícia. Vou a pé do metrô do Leblon ao Vidigal, onde vivo hoje, porque não tenho dinheiro. Ele me deixou sem nada.

Também há casos como o da estudante Alane de Souza, de 23 anos, que pediu para seu nome não ser omitido, ao contrário das outras entrevistadas. Ela foi agredida pelo professor de artes marciais, em uma academia na Tijuca:

— Ele me jogou no chão e começou a me xingar porque não consegui fazer um exercício, repetindo que não estava treinando bailarina. Tinha acabado de voltar de uma cirurgia no joelho, e ele sabia disso. Está doendo muito.

Há dois abrigos na cidade que recebem mulheres em situação de risco, geridos pela ONG RioSolidario. M. passou um ano inteiro em uma das casas, com um filho nos braços e outro na barriga. Fugiu de casa no dia em que descobriu a gravidez:

— Fiquei com medo do que ele faria. Nem minha mãe acreditou em mim, logo ela que apanhava do meu pai. Pedi socorro na Deam — conta M. — Hoje sei que não preciso repetir a história da minha mãe. Se a felicidade pudesse ser medida de zero a dez, diria que estou no nove.

 

O globo, n. 30529, 08/03/2017. Rio, p. 10