ENTREVISTA - Drauzio Varella

‘Corri o risco de perder a vida por uma bobagem’
 
Giselle Ouchana
 
21/03/2017
 
 

 

Em 2004, o médico contraiu o vírus da febre amarela, décadas depois de ter tomado uma única dose da vacina. A doença o levou a escrever um livro, no qual relata seu sofrimento. Hoje, ele destaca a importância da imunização, mas alerta que é preciso seguir

Quando o senhor teve a doença? Quais foram os primeiros sintomas?

Eu tive febre amarela em 2004. Fiz uma viagem à Amazônia, uma viagem muito rápida para um lugar que sempre vou, uma área do Rio Negro onde participo de pesquisas com plantas. Fui na quinta-feira à noite e voltei na madrugada do sábado. Cheguei em casa no domingo, estava bem, passei o dia de maneira normal, mas, à noite, acordei com uma febre muito alta, tendo calafrios. Coloquei um termômetro e vi que estava com quase 40 graus de temperatura. Depois de um tempo, passou. No dia seguinte, saí meio cansado para trabalhar, mas fui. À tarde, voltou a febre. Então, na verdade, fiquei com febre alta de domingo para segunda, de segunda para terça e de quarta para quinta. Mas consegui trabalhar segunda, terça e quarta. Na quinta-feira é que acordei muito debilitado.

 

Como foi sua recuperação? O senhor era vacinado?

Eu tinha tomado a vacina há 20 ou 30 anos. E realmente a vacina não estava mais cobrindo. Comecei a ter febre alta no domingo; na quinta, fui internado, e aí fiquei muito mal. É uma doença grave porque ela provoca insuficiência hepática muito rapidamente e atinge todos os órgãos. Pega o coração, faz uma miocardite; faz uma encefalite também porque o vírus se espalha pelo corpo todo. Fui ficando abilolado, entrando num coma superficial e achando que ia morrer. Estava sem emoção. Achava, tecnicamente, que ia morrer, porque eu acompanhava os exames laboratoriais e via que as coisas estavam ficando muito complicadas. Meu fígado estava parando completamente de funcionar. Fiquei internado três semanas. Eu me internei na quinta, e, na segunda-feira, estava muito mal. Na quarta-feira, comecei a melhorar um pouquinho. Mas segunda e terça foram dias muito ruins, eu não tenho bem noção do que aconteceu. Parecia que o mundo tinha sido envolto numa nuvem.

 

Essa experiência levou o senhor a lançar o livro “O médico doente”...

Escrevi o livro para tentar explicar como a gente pode ser pego de surpresa por uma doença que tem prevenção, que tem uma vacina. Justamente eu, um médico muito envolvido em questões relacionadas à prevenção, acabei chegando a uma fase muito grave da doença, deixando minha família toda preocupada, assim como meus amigos. Corri o risco de perder a vida por uma bobagem, por não ter repetido a vacina. A febre amarela é uma doença muito grave. Ela é uma espécie de dengue piorada, com uma mortalidade de pelo menos 50% a 60%. É uma doença bem grave mesmo, que não tem tratamento específico. A única coisa que você tem que fazer é manter o doente vivo com medidas de suporte, aplicando soro e analgésicos. Causa dores muito fortes e icterícia; você fica amarelo inteirinho, daí o nome da doença.

 

O senhor havia tomado a vacina, mas ficou doente...

A imunidade que a doença provoca é definitiva. Não há descrição de recaída de febre amarela. Ou você morre ou fica curado da doença, tornandose imunizado para sempre.

 

Houve avanços no tratamento ou nas pesquisas?

Não temos casos urbanos de febre amarela desde 1942. Então, as autoridade de saúde pública no Brasil sempre conseguiram controlar esses surtos. No ano em que tive febre amarela, 2004, houve cinco casos no Brasil. Agora, estamos tendo um surto com muito mais casos. Até onde eu sei, todos são de febre amarela silvestre. É a mesma doença, o medo é que ela chegue às grandes cidades porque, nos centros urbanos, temos o mosquito Aedes Aegypti, o mesmo que transmite a dengue, Aí, a doença pode tomar proporções maiores. Como as autoridades sanitárias têm conseguido controlar esses surtos? Vacinando as populações em situação de risco. Onde não existe febre amarela, não tem sentido vacinar a população toda, porque um em cada 400 mil vacinados sofre complicações. Se o risco de pegar febre amarela em uma determinada região é zero, quando você vacinar um milhão de pessoas terá um ou dois casos com complicações. Então, o que sempre recomendo é seguir as diretrizes apontadas pelo serviço de saúde pública. Quando houver campanha de vacinação, quando for recomendada a imunização na cidade em que você se encontra, aí, sim, tem que se vacinar. Caso contrário, temos que aguardar, a menos que você vá fazer uma viagem. Daquele tempo para cá, o tratamento não mudou. Nós não temos nenhuma droga capaz de matar o vírus da febre amarela. Depois de instalada, a doença vai ter seu curso. E o que a medicina faz é dar suporte, como aplicar soro, porque o doente não consegue comer, vomita muito e fica desidratado. Além de analgésicos, é o que a gente chama de terapia de manutenção: tem que segurar a pessoa viva para que o organismo se defenda do vírus. Infelizmente, não há remédio.

 

Medidas preventivas contra um surto no estado vêm sendo tomadas, como uma ampla campanha de vacinação e até uma restrição de acesso à reserva biológica de Poço das Antas. Como o senhor enxerga isso?

Não aconteceu nenhum caso na cidade do Rio. Temos que confiar nas autoridades sanitárias porque elas têm um dado que fala muito a favor. O último caso de febre amarela ocorreu em 1942, ou seja, há 75 anos que nós não temos um caso de febre amarela urbana no Brasil. No país, o serviço tem funcionado direito. Eu não conheço os dados do Rio. Acho que temos de seguir as orientações e vacinar as pessoas recomendadas pelos serviços de saúde pública. Não dá para entrar em pânico e dizer que tem que imunizar a população inteira porque as complicações decorrentes da vacina são raríssimas, mas elas acontecem, e nós não podemos correr esse risco de realizar uma vacinação em massa e registrar complicações maiores do que a ameaça que a doença pode, eventualmente, provocar.

O globo, n.30542 , 21/03/2017. Rio, p.14