Poder Judiciário e Direitos Humanos

Flavia Piovesan
02/03/2017
 
 
No estado de direito, toda lesão ou ameaça a direito merece a proteção do Poder Judiciário. No universo dos direitos e garantias fundamentais, o artigo 5º, XXXV da Constituição brasileira consagra que a lei não excluirá da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito. No mesmo sentido, os instrumentos internacionais de proteção de direitos humanos asseguram a toda e qualquer pessoa o direito a um recurso simples, rápido e efetivo perante juízes e tribunais competentes, independentes e imparciais, que a proteja contra atos que violem direitos, como disposto no artigo 10 da Declaração Universal de Direitos Humanos; no artigo 14 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; e nos artigos 8º e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Tanto por sua capacidade decisória (pautada no primado do Direito), como por institucionalizar a cultura do argumento (como medida de respeito ao ser humano), destaca-se a absoluta relevância das Cortes no estado de direito. Historicamente têm assumido a relevante missão de fomentar a cultura e a consciência de direitos e a supremacia constitucional, tendo seus julgados a força catalizadora de transformar legislações e políticas públicas, contribuindo para o avanço na proteção dos direitos humanos.

Na experiência brasileira, há um Direito dos Direitos Humanos pré e pós 1988. Ao simbolizar a transição democrática e a institucionalização de direitos humanos no país, a Constituição introduz a reinvenção do marco jurídico normativo relativo a direitos, sob a inspiração de seu princípio fundante e maior: a prevalência da dignidade humana. No pós 88 há adoção da mais vasta produção normativa afeta a direitos (com destaque à Lei Maria da Penha; ao Estatuto da Criança e do Adolescente; ao Estatuto do Idoso; ao Estatuto da Igualdade Racial; à lei que pune a tortura; à lei que combate o racismo; dentre tantas outras). No plano internacional, após 1988 o Brasil passa a ratificar os mais relevantes tratados de direitos humanos.

Neste contexto, fundamental é fortalecer a cultura de direitos humanos no Poder Judiciário, visando a uma prestação jurisdicional efetiva orientada pela implementação dos parâmetros protetivos constitucionais e internacionais em direitos humanos. Por iniciativa conjunta do Conselho Nacional de Justiça e da Secretaria Especial de Direitos Humanos, em 14 de fevereiro, foi realizada a solenidade de premiação do 1º concurso nacional de decisões judiciais e acórdãos em direitos humanos, proferidos nas mais diversas regiões do Brasil, envolvendo 13 categorias. No extraordinário repertório de decisões premiadas, destacam-se, dentre outras, aquelas que primaram pelo combate ao trabalho infantil em embarcações de carga no Pará; pela autorização de registro de nascimento tardio a pessoa idosa de 98 anos residente na maior ilha fluvial do mundo, em Tocantins; pela condenação ao assédio moral em corporação militar, dignificando direitos das mulheres, no Rio Grande do Sul; pela punição de ofensas raciais, no Distrito Federal; pelo respeito à diversidade religiosa, no Paraná; pelo respeito ao direito de consulta prévia, livre e informada aos povos tradicionais, no Pará; pela proteção aos direitos de transexuais, no Acre; pela proibição da discriminação e pela proteção de direitos de imigrantes e refugiados, no Paraná; pela garantia de mínimas condições de dignidade a pessoas privadas de liberdade, com respeito à sua integridade física, psíquica e moral, em São Paulo; pela observância dos direitos da população em situação de rua, em Minas; pelos direitos das pessoas com deficiência à inclusão e à igualdade, no Paraná; pela prevenção e combate à tortura, na Bahia; e pelo combate ao trabalho escravo, mediante a efetivação de direitos em situações de acentuada vulnerabilidade, no Amazonas.

O combate à cultura de violação e negação a direitos requer como resposta a cultura da proteção e afirmação de direitos. O Judiciário honra aqui sua vocação maior: assegurar direitos em face de toda lesão ou ameaça, conferindo absoluta prevalência à dignidade humana, mediante a proteção dos mais vulneráveis. Para Martha Nussbaum, imaginar a dor de uma pessoa e compreender o seu significado é modo poderoso de aprender acerca da realidade humana e adquirir motivação para transformá-la. Ao acolher a dor humana, estas decisões transformaram vidas, realidades e destinos. Asseguraram direitos. Realizaram justiça. Permitiram que direitos triunfassem sob a inspiração do princípio da dignidade humana, impulsionando o fortalecimento do próprio estado democrático de direito.

*Flavia Piovesan é professora de Direito da PUC/SP e Secretária Especial de Direitos Humanos

 

O globo, n. 30523, 02/03/2017. Artigos, p. 15