RETRATO SOMBRIO DO ENSINO

Renato Grandelle

20/03/2017

 

 

Análise revela que menos da metade dos docentes do 9º ano lecionaram 80% do conteúdo

Uma escola de poucos recursos, professores desmotivados e alunos sem interesse. O retrato sombrio é traçado pela análise da Prova Brasil 2015 pelo portal de educação QEdu em um levantamento divulgado hoje, a partir de questionários com milhares de integrantes do corpo docente e estudantes do ensino fundamental. Segundo o relatório bienal, apenas 45% dos mestres do 9º ano conseguiram desenvolver, no ano da enquete, ao menos 80% do conteúdo disciplinar previsto.

Entre os 52.341 diretores consultados pelo Ministério da Educação, 70% apontaram que o ensino foi dificultado por falta de recursos financeiros, e 55% lamentaram a carência de material de apoio aos professores. Diretor-executivo do QEdu, César Wedemann alerta que o corpo docente precisa apelar cada vez mais para soluções criativas que driblem o orçamento apertado do poder público.

— Os professores devem pensar em novas maneiras para acompanhar os alunos — aconselha. — Precisam se reunir e bolar sugestões que facilitem, sem aumentar os custos, a transmissão da matéria. Por exemplo, se os estudantes de uma escola tiverem dificuldade com um conteúdo, devem ser apresentados a algum modo alternativo de aprendizado que deu certo em outro colégio.

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AMBIENTE HOSTIL E BAIXAS EXPECTATIVAS

Os professores, no entanto, não têm uma alta expectativa de seus alunos. Dos 262.417 consultados, todos do 5º ou 9º ano do ensino fundamental, 55% acreditam que seus estudantes concluirão o ensino médio, mas apenas 12% avaliam que quase todos ingressão em universidades. A descrença tem raízes dentro e fora da sala de aula.

Na escola, segundo o levantamento, o corpo docente se depara com um ambiente hostil. Pouco mais de metade (51%) dos professores sofreram agressão física ou verbal de alunos, ou então viram funcionários passarem por este problema.

Os mestres também não veem as famílias dos estudantes como aliadas: os problemas de aprendizagem seriam causados, entre outros fatores, pelo meio social em que vive o aluno e pela falta de acompanhamento em casa de sua vida escolar.

Pesquisador da Fundação Lemann, atuante na área de educação, Ernesto Faria destaca que 9% dos diretores e 5% dos professores já foram vítimas de furto. Um por cento dos mestres também sofreram assalto. O ambiente hostil é uma dificuldade que deve ser contornada.

— Oitenta e três por cento dos professores acham que o meio social em que o aluno convive pode interferir na aprendizagem. Mas não dá para isolar a escola do local onde está. É preciso estabelecer um diálogo entre ela e a comunidade — reivindica. — O colégio deve ser visto como um ambiente diferenciado, em que uma pichação é pintada logo depois de ser feita, como uma demonstração de que este mau comportamento não será tolerado. A violência também não pode ser permitida. Sabemos que muitos fatores influenciam o desempenho nas salas de aula, como o contexto socioeconômico e a participação dos pais. O professor não pode desistir. Também deve encarar esta situação como um problema seu.

O Brasil está no topo do ranking da violência contra professores, segundo uma pesquisa divulgada em 2014 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), feita com mais de cem mil profissionais de educação que atuam com alunos de 11 a 16 anos.

No país, 12,5% dos docentes afirmaram sofrer agressões verbais ou intimidações por parte dos alunos ao menos uma vez na semana. Este é o índice mais alto entre os 34 países pesquisados. Em segundo lugar aparece a Estônia, com 11%, e em terceiro, a Austrália, com 9,7%. Em Coreia do Sul, Malásia e Romênia, o índice é zero.

Presidente-executiva do Todos pela Educação, Priscila Fonseca da Cruz afirma que o elevado índice de agressão mostra outra falha dos colégios:

— Além de ensinar disciplinas, a escola também é um local para o desenvolvimento de valores. Se há tantas agressões, isso é uma prova de que toda a sociedade está fracassando — lamenta. — A hostilidade a um professor representa a total desistência em relação ao ensino. É o cúmulo da falta de crédito.

De acordo com Priscila, o questionário da Prova Brasil é mais uma prova de que ninguém assume a culpa pelo baixo desempenho escolar no país.

— Sempre tivemos um jogo de acusações: a família acusa a escola, o diretor acusa o governo, que acusa o professor grevista — observa. — Os alunos reconhecem sua baixa autoestima, mas não fazem nada para combatê-la. Não devemos ficar felizes com baixas expectativas, nem pensar que tudo é feito na sala de aula. Entre 50% e 66% do desempenho do estudante se devem ao meio familiar.

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FALTA DE DIÁLOGO E FORMAÇÃO DEFICIENTE

Wedemann concorda que falta uma “relação harmoniosa” entre alunos e professores. Parte dessa falta de diálogo poderia ser atribuída à necessidade de modernizá-lo.

— Os estudantes estão cada vez menos passivos. Hoje não há motivação, mas eles precisam se sentir desafiados — conta. — Os professores reconhecem que existe uma barreira entre eles e os alunos, sabem que eles enfrentam outra realidade.

Os educadores entrevistados pelo GLOBO afirmam que a dificuldade para transmitir todo o conteúdo programado é um problema histórico.

— O Brasil é um dos campeões mundiais em perda de tempo durante o dia letivo, e isso acontece porque há turmas muito indisciplinadas — explica Priscila. — Das quatro horas diárias de aula, o professor perde uma hora e meia parando a atividade para conseguir atenção dos estudantes, que também ficam inquietos nos dez minutos finais, ansiosos para irem embora. Então, considerando o pouco tempo restante e a infraestrutura precária dos colégios, o que conseguimos é quase um milagre. Faria, da Fundação Lemann, acrescenta: — Às vezes perdemos metade do tempo fazendo chamada e registrando faltas. Isso é especialmente grave entre os alunos de baixo nível socioeconômico, que são os mais carentes de conteúdo. Não adianta ter um bom currículo se não podemos passar isso aos alunos.

A dificuldade para lecionar também pode ter origem na formação do professor, muitas vezes insuficiente ou defasada. Entre os mestres consultados em 2015, no levantamento da Prova Brasil, 88% disseram que gostariam de ter participado de mais atividades de desenvolvimento profissional. E 67% afirmaram ter “alta necessidade” de obter formação específica para trabalhar com estudantes com deficiência ou necessidades especiais — esta carência é reconhecida por 51% dos diretores, que também admitem não contar com salas de recursos multifuncionais.

— Os professores não conseguem explorar todo o material porque só recebem palestras generalistas, sem qualquer afinidade com a atividade na escola — critica Priscila. — Não existe a conexão necessária entre sua formação profissional e o que eles vão encontrar nas salas de aula.

O globo, n.30541 , 20/03/2017. Sociedade, p. 24