ENTREVISTA - Caio Farah Rodriguez

Maíra Magro

11/03/2017

 

 

O advogado Caio Farah Rodriguez foi um dos três responsáveis por coordenar as negociações dos acordos de leniência e delação premiada da Odebrecht com o Ministério Público Federal (MPF), que devem vir à tona nas próximas semanas, após o pedido de retirada do sigilo sobre o caso. O processo, que durou nove meses e mais de 50 reuniões, vem gerando alta tensão no mundo político brasileiro, inclusive no grupo que cerca o presidente Michel Temer, com ministros e o próprio presidente mencionados em delações.

Em entrevista ao Valor, Rodriguez afirma que a Odebrecht e as demais empresas investigadas na Operação Lava-Jato poderiam ficar sujeitas a "deslealdade governamental" se outros órgãos da administração pública não endossarem os benefícios concedidos nesses compromissos.

Ele defende que, por tratarem de questões penais, os acordos só poderiam ser fechados com o MPF. O Ministério da Transparência e a Advocacia-Geral da União (AGU), argumenta o advogado, não poderiam sequer valorar as provas envolvidas, por não terem competência de atuar na esfera criminal. A questão vem gerando polêmica porque, após os acordos com o Ministério Público, as empresas vêm sofrendo ações de improbidade da AGU e temem não conseguir fechar acordos exigidos pela CGU.

Rodriguez é fundador do curso de Direito da FGV-Rio, onde atua como um dos responsáveis pelo estudo dos temas do combate à corrupção e dos acordos de leniência. Ele sustenta que o MPF tem poder de dar às empresas lenientes quitação geral quanto a possíveis sanções administrativas movidas pela AGU e o Ministério da Transparência, como ações de improbidade e declaração de inidoneidade: "Seria um exercício abusivo de competência, por parte de outros órgãos, questionar a eficácia plena do acordo firmado com o MPF", afirma, ao contrário das posições manifestadas por AGU e CGU.

E acrescenta: "É o teste de fogo do governo. Se ele é de fato comprometido com o combate à corrupção, tem que apoiar e dar efetividade aos acordos de leniência em toda a sua extensão." Para o advogado, a efetividade desses compromissos envolve a empresa poder voltar a contratar com a Petrobras e a obter créditos junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES).

A seguir, os principais trechos da entrevista ao Valor PRO, serviço de notícias em tempo real do Valor:

 

Valor: A ministra-chefe da Advocacia-Geral da União (AGU), Grace Mendonça, disse que os acordos de leniência fechados só com o MPF não dão quitação geral às empresas em relação a medidas administrativas do Ministério da Transparência e ações de improbidade da AGU.

Caio Farah Rodriguez: Primeiro, é inegável que os acordos de leniência e colaboração firmados com o MPF têm relevância extrema para o combate à corrupção. Segundo, o que a Operação Lava-Jato revelou não foram simples desvios de conduta de funcionários públicos isolados. Foi um tipo de corrupção sistêmica, que abrange um amplo espectro político-partidário, que trata não apenas de funcionários públicos mas de agentes políticos, além de empresários. Isso faz diferença do ponto de vista da competência da Controladoria-Geral da União (atual Ministério da Transparência), que não pode instaurar processos disciplinares contra políticos, mas apenas em relação a agentes públicos, como funcionários de carreira e executivos de empresas públicas federais. Faço a ressalva de que não estou falando como representante de nenhuma empresa, mas como alguém que estuda o assunto e trabalhou em um caso importante da Lava-Jato.

 

Valor: Então, só o MPF poderia fechar esses acordos?

Rodriguez: Diante desse caráter sistêmico, o MPF assumiu a liderança do processo, porque tem competência abrangente nas áreas civil, que inclui a improbidade administrativa, e penal.

 

Valor: Mas isso impede que o Ministério da Transparência e a AGU participem ou façam suas próprias negociações com as empresas?

Rodriguez: Não se trata de uma contraposição entre CGU, AGU e MPF. O MPF, diferentemente de órgãos de governo, tem uma competência ampla. Ele pode tratar de todos os aspectos dos fatos revelados na Lava-Jato. E ele também tem uma garantia de independência institucional que os outros órgãos não têm. Por exemplo, os outros órgãos têm sua chefia subordinada ao chefe do governo federal, ou seja, é um cargo político, por oposição ao chefe do MP, que não é um cargo político, é um cargo dotado de independência.

 

Valor: A presidente do BNDES, Maria Silvia Bastos Marques, diz que a chancela do Ministério da Transparência e da AGU daria maior segurança jurídica para a obtenção de crédito.

Rodriguez: O efeito do acordo de leniência [com o MPF] é justamente permitir que a empresa se preserve, continue suas atividades, possa voltar a ser contratada pelo poder público, a receber créditos públicos. Na medida em que isso é colocado em questão, o que se está questionando é a própria efetividade do acordo como instrumento de combate à corrupção e destravamento dos investimentos.

 

Valor: Em entrevista ao "Valor", o subprocurador-geral da República Marcelo Muscogliati disse que acordo de leniência não existe para destravar crédito...

Rodriguez: A própria divulgação do acordo com o MPF, no fim do ano passado, exprime expressamente que uma das justificativas dele é a sobrevivência da empresa e a continuidade das atividades. O que me parece que ele disse é outra coisa, ou seja, que em relação às empresas que celebraram leniência com o MPF, a concessão de crédito pelo BNDES passou a ser uma questão técnica, não política ou jurídica. As empresas que firmaram acordo de leniência não apenas estão aptas a receber crédito, como estão em melhores condições que as empresas que não são lenientes.

 

Valor: A Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013) diz que "a CGU é o órgão competente para celebrar os acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo federal". Alguma lei prevê a atuação do MP ou se trata de uma inovação jurídica?

Rodriguez: A autoridade e a legitimidade do MP para firmar acordo de leniência não vêm de uma lei, mas do artigo 127 da Constituição, que fala sobre o papel do MP. Ele está exercendo um papel constitucional que é o de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Isso se torna particularmente pertinente em razão da natureza dos fatos revelados pela Lava-Jato, que superam os desvios de conduta de funcionários públicos, incluindo políticos de alto escalão. A CGU sequer teria competência para instaurar processo disciplinar contra essas pessoas.

 

Valor: Mas o texto constitucional nesse caso não seria frágil para dar essa garantia ao MP, por não falar especificamente em acordo de leniência?

Rodriguez: Frágil seria dizer que órgãos que têm sequer a competência para processar agentes políticos, e órgãos que não têm competência penal, pudessem entender que um órgão de Estado que tem todas essas competências estivesse restrito no exercício dessa competência. Vale lembrar que, na hierarquia das leis, a Constituição prevalece sobre as leis ordinárias. E vale lembrar que a Lei Anticorrupção entrou em vigor em 2014. Então a competência da CGU, além de não incluir agentes políticos, não inclui fatos anteriores a 2014.

 

Valor: Mas a AGU tem a competência de entrar com ações de improbidade, segundo a Constituição...

Rodriguez: Um acordo de leniência tem alguns propósitos. Primeiro, a obtenção de informações para investigações. Para que a AGU pudesse revisar um acordo como esse, ela teria que ser capaz de atribuir valor às informações passadas. Só que a AGU não tem competência penal. A segunda característica importante é a cessação imediata das práticas ilícitas da empresa e a instauração de um regime de compliance efetivo. A terceira é a preservação da empresa, sobretudo para a preservação de empregos mas também o pagamento da reparação civil. Para se chegar nesses três elementos, é preciso que se haja uma negociação de confiança. A empresa oferece informações e se dispõe a colaborar e, em contrapartida, o órgão de Estado oferece proteções e benefícios. No momento em que essa confiança é quebrada, porque a empresa está agora obrigada, apesar de já ter cumprido a sua parte, a cumprir outros requisitos, pode se dizer que a empresa poderia ficar sujeita a uma deslealdade governamental.

 

Valor: Que benefícios o acordo com o MPF pode oferecer?

Rodriguez: Os benefícios incluem a empresa não ser retaliada, que possa ter acesso a crédito público na medida em que critérios técnicos sejam cumpridos, acesso a novos contratos, no caso também ao cadastro da Petrobras [atualmente sem esse acesso, a Odebrecht está impedida de contratar com a Petrobras ]. E isso o MP tem sido bastante positivo em enfatizar. É mais vantajoso ao poder público fazer negócio com empresas que firmaram acordo de leniência com o MP, porque há uma garantia de que elas têm um programa de conformidade efetivo. Se a empresa violar, estará sujeita a um enorme conjunto de consequências.

 

Valor: As empresas que fecham acordos de leniência podem mudar as práticas de mercado?

Rodriguez: As três principais empresas com as quais o MP já firmou acordo de leniência na Lava-Jato, Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e Odebrecht, são três dos maiores grupos privados do país, protagonistas dos mercados em que atuam. Então, podem servir de vetor de transformação desses mercados. Em vez de dificultar que elas voltem a fazer negócios, deve-se estimular que elas voltem a fazer negócios. Numa economia em dificuldade, por que restringir que elas voltem a participar de contratos públicos e a receber crédito?

 

Valor: Mas e a falta de segurança jurídica, já que a CGU e a AGU não firmaram acordos e consideram que podem agir?

Rodriguez: A segurança jurídica é o resultado de uma prática consistente sob o controle do Judiciário. Na Lava-Jato, o MPF serviu como esse órgão que deu coesão à atuação do Estado para obtenção das informações que alavancassem as investigações em troca de uma proteção e da sobrevivência das empresas. Então, me parece que um órgão de Estado, com as características que já mencionei, sob o controle do Judiciário, não depende de outros órgãos para dar plena efetividade aos acordos que firma.

 

Valor: As empresas obtiveram certidões do MPF nesse sentido?

Rodriguez: O MPF já emitiu certidões para diversos órgãos públicos, depois da assinatura do acordo, dizendo que essas empresas são idôneas e podem ser contratadas. Se de fato o governo quer demonstrar, além de meras palavras, que tem um compromisso de combate à corrupção, e com destravamento de investimentos, para mim esse é o teste de fogo. Apoiar ou colocar obstáculos ao acordos feitos pelo MPF.

 

Valor: A que o senhor atribui o que chamou de "deslealdade governamental"? Poderia estar relacionada ao fato de que a empresa delatou o presidente e seu grupo de assessores mais próximos?

Rodriguez: Não sei. Mas uma hipótese seria atribuir às mesmas pessoas a quem interessa deslegitimar o acordo de leniência com o MPF.

 

Valor: Quando o MPF entra na esfera de atribuição de outro órgão de governo, como AGU e CGU, ele não teria que combinar com esses órgãos para que eles abrissem mão de medidas administrativas?

Rodriguez: O MPF também age no âmbito das ações de improbidade. Então, todas as sanções que poderiam ser aplicadas pela AGU nessa esfera o MP pode pleitear igualmente. E ele foi lá e escreveu, com todas as letras nos acordos, que não pleiteará mais nenhuma sanção ou indenização, inclusive de improbidade. A competência dele é ampla e, diante desses fatos específicos, ele pode falar e falou. É questão de coerência da atuação estatal. Seria um exercício abusivo de competência, por parte de outros órgãos, questionar a eficácia plena do acordo firmado com o MPF.

 

Valor: Mas o fato de ele também ter a competência não exclui a possibilidade do outro órgão de agir...

Rodriguez: O que se espera é uma atuação coerente dos diversos órgãos estatais. Me parece que é do interesse do Estado como um todo, não apenas das empresas, que os acordos de leniência celebrados pelo MPF sejam cumpridos sem empecilhos. A criação de empecilhos é que leva a dúvida de a quem interessa que aqueles dois efeitos - o efetivo combate à corrupção e o destravamento de investimentos - não ocorra.

 

Valor: Mas como já existem as provas penais, CGU e AGU não poderiam atuar depois, avaliando apenas os termos do acordo?

Rodriguez: Não, porque o principal objeto do acordo de leniência são informações. É disso que o Estado está atrás quando firma esse acordo. E se um órgão não pode atribuir valor a essa informação, como ele vai poder atribuir valor a minha colaboração? Ele não sabe dizer se é boa, ruim, quanto ela vale, se poderia ter algum benefício em troca... É isso que chamei de deslealdade governamental. As provas foram obtidas por meio de um acordo em que houve de fato uma proporção acordada entre fatos, proteções, preço a pagar, benefício, justamente para que se pudesse ter aceso a essas provas. Aí um órgão que sequer poderia valorar essas provas quer rediscutir a equação?

 

Valor: A empresa se sente traída?

Rodriguez: De novo, não falo em nome de nenhuma empresa, mas como profissional e professor que calhou de atuar em um caso importante. Para mim não se trata apenas uma injustiça moral, tem um efeito jurídico. A empresa agora já entregou todos os fatos. E se estivesse sujeita a consequências adicionais àquelas que foram combinadas? Alguém que não pôde dar os benefícios agora querer se valer dos mesmos fatos. É como se o Estado estivesse agindo de maneira incoerente: eu tenho informações de um lado e me dão benefícios, aí entra na sala um outro e diz 'agora eu preciso de mais um pouco'. Não me parece que o direito brasileiro proteja esse tipo de ideia, e não me parece que os interesses do combate à corrupção e do destravamento de investimentos também apoie essa ideia. A valer esse raciocínio, nenhuma outra empresa vai fazer acordo de leniência. E o que se consegue? A inefetividade do combate à corrupção, que é o principal efeito dos acordos de leniência.

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4212, 11/03/2017. Política, p. A10.