A heterodoxia na raiz da crise

Pedro Cavalcanti e Renato Fragelli

15/03/2017

 

 

Os números do PIB de 2016, liberados pelo IBGE na semana passada, revelaram um quadro de terra arrasada, uma crise como nunca ocorreu antes neste país. Trata-se da pior recessão da história, deixando para trás a "década perdida" dos anos 1980 e a crise de 1929.

A queda do PIB acumulada nos dois últimos anos superou 7%. A renda per capita caiu mais de 9% desde 2014. O PIB encontra-se hoje no nível de meados de 2010, enquanto a renda per capita está três pontos percentuais abaixo do valor observado nesse mesmo ano. A crise disseminou-se por todos os setores produtivos. Agricultura, serviços e indústria enfrentaram queda da produção no ano passado. O consumo das famílias caiu 4,2% e o investimento despencou abissais 10,2%, levando a taxa de investimento a apenas 16,9% do PIB, o menor valor em 21 anos.

Qualquer que seja o indicador - produto, emprego, renda, investimento, etc. - o quadro é muito negativo. Isto, claro, dentro do Brasil, por que lá fora as coisas não vão mal. A expansão do PIB nos Estados Unidos no ano passado foi de 1,6%, no Reino Unido, de 1,8% e na Espanha, de 3,2%. O México cresceu 2,3% e a China "somente" 6,7%. Assim, não há crise externa para justificar a crise brasileira, como a presidente Dilma Rousseff e sua equipe econômica diziam. O fato de Venezuela e Argentina, outros dois países que seguiram ou seguem políticas heterodoxas intervencionistas, também estarem em recessão aponta o possível culpado: as políticas desastradas adotadas no país a partir do final do segundo mandato do presidente Lula.

Não foi por falta de aviso. Em que pese a euforia lulista finda em 2010 e a própria eleição - e reeleição! - de Dilma Rousseff, para nós e para alguns poucos analistas - como Alexandre Schwartsman, Armando Castelar, Rogério Werneck e Roberto Ellery - estava claro, desde meados de 2011, que o conjunto de políticas denominadas Nova Matriz Econômica não poderia dar certo e levaria o Brasil a uma crise inédita.

(...)

Os fundamentos teóricos eram absolutamente equivocados, o respeito aos dados e à evidência empírica era inexistente, não havia qualquer estudo prévio sobre o impacto das políticas adotadas e, como se fosse pouco, qualquer grupo de pressão - alguns representando interesses nada republicanos - conseguia transformar em políticas públicas seus objetivos particulares. Somem-se a isso a fraude explícita nas contas públicas, decorrentes do total desprezo pelo equilíbrio orçamentário e do mais deslavado oportunismo político, e o resultado final foi o caos em que se jogou o país a partir de 2014.

Já em 2010 os números de produtividade, especialmente produtividade total de fatores, davam sinais de estagnação e queda. E, para quem não se formou repetindo chavões políticos ou ideias dos anos 50, o resultado não poderia ser outro. Distorções como controle de preços e câmbio, subsídios sem critérios e proteção comercial agressiva geram sempre ineficiências que mais cedo ou mais tarde impactam negativamente o crescimento da economia. Basta estudar Introdução à Economia em uma boa escola para saber que a desorganização das contas públicas, por diferentes e vários motivos, vem acompanhada de baixo crescimento de longo prazo.

Ainda assim, muitos acharam que esses eram problemas menores e que fazendo tudo errado o Brasil daria certo.

As escolas heterodoxas, de onde saíram todos os formuladores das políticas econômicas adotadas no país a partir de 2008, em particular a própria presidente Dilma Rousseff, deveriam neste momento estar fazendo uma profunda revisão de seus métodos, fundamentos teóricos e práticas políticas. Afinal, o apoio à Nova Matriz foi unânime entre seus membros, em que pese uma discordância de ênfase, mas não de direção, aqui e ali. Não se ouve, entretanto, qualquer autocrítica. Ao contrário, aparentemente quase todos os heterodoxos teriam sido contrários ou tinham críticas à Nova Matriz. Alguns dizem que "essa não era a verdadeira política heterodoxa". Filho feio não tem pai.

É verdade que muitos desses economistas estão mais interessados em fazer suas pesquisas e nem todos são a favor de se arrebentar as contas públicas. Entretanto, no que toca ao debate de política econômica daquele momento, o equilíbrio fiscal parecia uma preocupação menor, ou rudimentar, quando comparado a questões como o volume ideal de dinheiro público que o BNDES deveria doar para esse ou aquele setor, ou o nível ótimo de manipulação do câmbio.

Há também, por parte de um grupo algo vocal, grande desonestidade intelectual. Uma das explicações favoritas é que as políticas de ajuste de Joaquim Levy em 2015 teriam provocado a recessão. A atribuição de culpa peca duplamente. Primeiro por incompatibilidade com a cronologia dos eventos, afinal a recessão começou em 2014, antes da chegada de Levy. Segundo por impossibilidade quantitativa, pois o multiplicador dos gastos públicos sobre o produto teria que ser de uma ordem de grandeza muito acima das maiores estimativas existentes para que a recessão pudesse ser explicada pelo ajuste fiscal iniciado por Levy. Esse fato é provavelmente sabido, mas convenientemente ignorado.

Outros se assanharam com os números de 2016, pois com eles puderam atacar seus adversários políticos, jogando a culpa no atual governo. É o tipo de comportamento que se espera - mas não se aceita - de um político oportunista, ou em uma conversa de botequim, mas por agredir os fatos e o mais básico saber econômico, jamais se esperaria de professores de Economia. Teme-se pelo futuro de seus alunos.

O país paga agora o preço dos erros da mais equivocada política econômica jamais implementada por aqui. A reação dos economistas heterodoxos às críticas do passado, bem como suas respostas à crise atual, sequer permite o único consolo possível - o de que a magnitude do estrago impediria a repetição dos mesmos erros. Aparentemente não houve aprendizado.

 

Pedro Cavalcanti Ferreira é professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento

Renato Fragelli Cardoso é professor da EPGE-FGV. Escrevem mensalmente neste espaço.

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4214, 15/03/2017. Opinião, p. A11.