Bolsonaro amplia discurso, mas passado deve cobrar fatura

Paulo Celso Pereira

26/03/2017

 

 

O deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) tornou-se a grande surpresa do cenário pré-eleitoral para a disputa presidencial de 2018. Nas últimas pesquisas, o parlamentar fluminense conseguiu crescimento contínuo e viu seus principais concorrentes — exceto o ex-presidente Lula — minguarem. No entanto, o mesmo histrionismo que lhe rende popularidade pode lhe cobrar uma fatura pesada no processo eleitoral do ano que vem. Uma análise de 60 discursos, entre os mais de 900 cuja transcrição está à disposição no site da Câmara, mostra o tamanho do problema. Embora mantenha-se polêmico, suas falas do início da década passada envolvem críticas a temas hoje amplamente populares, como o Fundo de Combate à Pobreza — que financiaria o Bolsa Escola, origem do Bolsa Família —, e até defesa de parlamentares acusados de corrupção que, segundo ele, são obrigados a “propinar”.

Nas últimas semanas, O GLOBO se debruçou sobre 30 discursos realizados entre 2000 e 2001, os mais antigos transcritos, e sobre os 30 mais recentes, que reúnem basicamente falas feitas desde a saída de Dilma Rousseff do Palácio do Planalto, em maio passado. Dessas muitas horas de pronunciamentos na tribuna da Câmara, qualificada por Bolsonaro como seu “tanque de guerra”, é possível observar também uma transição do deputado.

Se, no início da década passada, todas suas falas faziam ao menos uma referência a questões de interesse dos militares, como a defesa de melhorias salariais e manutenção de privilégios, agora os temas relativos a seus colegas de farda passaram a dividir espaço com um manancial de outras pautas nacionais, escolhidas como plataforma de sua pré-candidatura. A lista é grande: o programa Escola Sem Partido, a mudança na lei do desarmamento, o combate a propostas de legalização das drogas, a castração química de estupradores, o apoio ao setor rural contra os sem-terra e contra demarcações indígenas, a defesa de policiais e bombeiros, de mudanças no programa Mais Médicos e o combate ao que qualifica como “ideologia de gênero”. Outra alteração nítida entre os dois períodos é que, em seus discursos mais recentes, após o deputado tornar-se evangélico, surgiram referências bíblicas.

Algumas coisas, no entanto, não mudaram nos últimos 20 anos. Bolsonaro segue encampando uma forte defesa do papel dos militares na sociedade — tanto nos discursos de 2000 quanto nos mais recentes afirma que o Ministério Defesa deveria ser o mais importante —, mantém uma visão nacionalista, protecionista e crítica aos Estados Unidos, faz ataques frequentes à mídia e mantém a acidez em relação aos presidentes do Banco Central que atuavam no mercado financeiro, seja Armínio Fraga ou Ilan Goldfajn.

Ao contrário do que a virulência recente contra o PT faz parecer, Bolsonaro não teve nos governos Lula e Dilma Rousseff posição muito distinta da que adotou com Fernando Henrique Cardoso. Em 2000, o ex-militar tinha o então presidente como seu inimigo preferencial e frequentemente atacava o atual ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes Ferreira, que atuou na luta armada contra a Ditadura de 1964:

— O Aloysio Nunes Ferreira não precisa assaltar mais nada hoje em dia, ele está do lado do maior ladrão que existe na história do país, que se chama Fernando Henrique Cardoso — disse em dezembro de 2000.

Nesse mesmo discurso, realizado quando o senador Luiz Estevão e o juiz Nicolau dos Santos Neto já eram acusados de fraudar as obras de construção de um prédio da Justiça do Trabalho em São Paulo, o deputado sai em defesa dos deputados que recebiam propinas, dizendo serem eles vítimas de movimentos do Poder Executivo:

— Muitas vezes, tem que se propinar lá. Se não propinar o respectivo Ministério, não tem recurso.

Essa sua última fala de 2000 ainda guardava outra polêmica que deve cobrar seu preço na campanha do ano que vem. Bolsonaro diz orgulhar-se de ter sido o único deputado a votar contra o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, pois este aumentaria impostos, e apresentou sua plataforma para ajudar os mais necessitados:

— O combate à fome e à miséria passa por uma rígida política de controle da natalidade. Se não for assim, tudo o que estamos fazendo não alcançará nosso objetivo. Então, até aprovaria essa proposta se tivesse vindo junto com uma política de controle de natalidade, porque estamos, na verdade, estimulando a classe pobre para que cada vez tenha mais filhos, principalmente agora que eles estão sabendo que grande parte ou a totalidade desse dinheiro deverá ser empregado no Programa Bolsa Escola. Ou seja, eu quero ser reprodutor. Quanto mais filhos tiver, mais salário mínimo vou ganhar.

Mas não são apenas as falas mais antigas que devem lhe cobrar a fatura. No ano passado, por exemplo, o deputado saiu em defesa do tenente que protagonizou uma tragédia no Rio em 2008: o militar e sua equipe, que atuavam no Morro da Mineira, levaram três jovens de lá até o Morro da Providência, e os entregaram a traficantes do local. Os três jovens foram assassinados. Em discurso, Bolsonaro reclamou da responsabilização do tenente, que teria feito “uma coisa que, normalmente, não poderia ser feita”.

— O senador Marcelo Crivella (...) pediu as tropas no Morro da Mineira, e o Exército mandou. Quem pagou a conta? Um tenente da Academia. Hoje, nós temos um tenente da Academia que passou por várias situações, entre elas o manicômio psiquiátrico, e está jogado às traças. Ninguém se colocou para defender aquele tenente — afirmou em agosto do ano passado.

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BOLSONARO ONTEM
 

“Na mesa do juiz (Nicolau dos Santos Neto) também não caiu dinheiro do céu, como não caiu dinheiro do céu na mesa do senador Luiz Estevão. Ninguém libera uma emenda de 50 mil reais para nós, nesta Casa, sem muito sacrifício, e, muitas vezes, tem que se propinar lá. Se não propinar o respectivo Ministério, não tem recurso.” Discurso em dezembro de 2000

“Pergunto ao presidente Fernando Henrique Cardoso, que tem horror a torturadores, se por acaso morre de amores por assaltantes. Ao seu lado está o ministro Aloysio Nunes Ferreira, que, em 1968, usava o codinome de Beto e assaltou o trem pagador na Ferrovia Santos-Jundiaí, e logo depois o carro pagador da Massey Ferguson, em outubro daquele mesmo ano. É, o Aloysio Nunes Ferreira não precisa assaltar mais nada hoje em dia, ele está do lado do maior ladrão que existe na história do país, que se chama Fernando Henrique Cardoso”. Discurso em dezembro de 2000

“Armínio Fraga deixou um emprego de milhões de dólares no exterior para ganhar em torno de 10 mil reais por mês no Brasil. No meu entender, essas pessoas é que têm de ser investigadas, não os jogadores de futebol” Discurso em outubro de 2000, quando uma CPI investigava o dinheiro que jogadores enviavam para o Brasil sem pagar impostos

“Eu não sou defensor de direitos humanos, acho mesmo que vagabundo tem que ir para a vala, para o pau-de-arara e por aí afora — e infelizmente só mataram 111 no Carandiru” Discurso em novembro de 2000

“Acho que até a transição para a democracia devia ser feita com a volta dos militares ao poder, porque não tivemos ditadura” Discurso em março de 2001

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BOLSONARO AGORA
 

“Há pouco tempo, tivemos um problema no Rio de Janeiro, em um projeto conhecido como Cimento Social. Um tenente do Exército fez uma coisa que, normalmente, não poderia ser feita. ‘Quem é o responsável?’ O senador Marcelo Crivella (...) pediu as tropas no Morro da Mineira, e o Exército mandou. Quem pagou a conta? Um tenente da Academia. Hoje, nós temos um tenente da Academia que está jogado às traças. Ninguém se colocou para defender aquele tenente” Discurso em agosto do ano passado, defendendo o tenente responsável pela entrega de três jovens do Morro da Mineira a traficantes do Morro da Providência, que em seguida os assassinaram

“Eu falo o seguinte: No que depender de mim, como eu considero a propriedade privada sagrada, você vai receber o pessoal do MST com cartucho 762.”. Discurso em agosto do ano passado

“A luta armada pode vir agora, influenciada e aparelhada por estrangeiros, por gente do Estado Islâmico e, em especial, por cubanos. Acorde, povo brasileiro! Se querem paz, democracia e liberdade, fiquem atentos!” Discurso em outubro passado

“Vejam se nós, brasileiros, temos alguma oportunidade aceita lá fora. Não existe reciprocidade. É um crime o que estão fazendo aqui com este projeto de lei, escancarando as portas do Brasil para todo o mundo. Tudo quanto é tipo de escória virá para cá agora!” Declaração de voto, em dezembro passado, no projeto de lei sobre migração

“No livro do Mujica fica bem claro que Dilma Rousseff tomava decisões de Estado ouvindo a parte aparelhada da ABIN, bem como agentes cubanos e venezuelanos”. Discurso no ano passado.

O globo, n.30547 , 26/03/2017.País, p.10