Valor econômico, v. 17, n. 4221, 24/03/2017. Brasil, p. A3

Para analistas, projeto não livra empresas de normas fixadas pela CLT

Por: Adriana Aguiar e Zínia Baeta

 

Ainda que exista autorização expressa em lei para a ampla terceirização, na prática a norma não dará segurança para que as empresas possam substituir todos os trabalhadores registrados. A análise de especialistas é que o Projeto de Lei nº 4.302/1998, aprovado nesta semana pela Câmara dos Deputados, não livra as empresas de cumprir normas da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e enfrentar processos na Justiça. Atualmente, nos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) tramitam mais de 50 mil processos sobre o tema.

"A proposta de lei tem um caráter de generalidade, por isso quem vai delimitá-la será a Justiça do Trabalho", avalia a desembargadora aposentada e ex-presidente do TRT de São Paulo, Maria Aparecida Pellegrina, hoje sócia do Pellegrina & Monteiro Advogados.

Um dos principais pontos levantados por advogados e magistrados é a possibilidade de o empregado ainda que terceirizado obter o vínculo com a companhia contratante dos serviços.

Isso poderia ocorrer se o terceirizado demonstrasse que cumpria ordens, horários e normas internas da tomadora de serviços, assim como a habitualidade (comparecer ao menos três vezes por semana ao local de trabalho). Esses requisitos, além da pessoalidade, estão previstos nos artigos 3º e 4º da CLT.

"Se um banco terceiriza os seus caixas, por exemplo, mas eles recebem ordens do gerente da agência, têm horário para entrar e sair estabelecido pela instituição", fica caracterizado o vínculo", exemplifica a professora e advogada Dânia Fiorin Longhi. De acordo com ela, o próprio texto do projeto diz que esse terceirizado precisa estar subordinado à prestadora de serviços.

A advogada Cássia Pizzotti, sócia da área trabalhista do Demarest Advogados afirma que a lei deve trazer novos investimentos para o Brasil e aumentar contratações. "Assessorei um caso recente de uma empresa que estrangeira que ia se estabelecer no Brasil com 20 mil empregados mas desistiu quando soube que a terceirização não era regulamentada por lei". Porém, de acordo com Cássia, a norma não deve permitir que fraudes aconteçam.

" A mudança não é tão radical quanto parece. Houve a aprovação de uma terceirização de forma mais abrangente porque ela passa a ser lícita em qualquer atividade, mas isso não significa que se possa terceirizar irrestritamente, violando o que dispõe a CLT".

A única discussão que a proposta, se sancionada, finalizará no Judiciário é se os terceirizados estão na atividade-meio ou atividade-fim, segundo Cássia. Hoje são esses os termos que a Justiça do Trabalho utiliza para permitir ou não a terceirização. A terceirização da atividade fim ou a principal é vedada pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) por meio da Súmula nº 331.

Com a possibilidade da terceirização ser aprovada, alguns setores como promoção de vendas, logística, teleatendimentos ou televendas terão mais segurança para usar esse meio de contratação, segundo a advogada. Uma fábrica de maionese não precisa contratar como empregado uma pessoa que faz promoção de vendas no supermercado ou uma indústria pode terceirizar a produção de embalagens de seu produto.

Por outro lado, a advogada Maria Aparecida Pellegrina avalia que a terceirização de 100% dos funcionários de uma empresa poderá ser considerada fraude pela Justiça do Trabalho. E que situações como essas deverão ser observadas pelos sindicatos.

Professor de Direito do trabalho do Damásio Educacional Leone Pereira, sócio do PMR Advogados, ressalta que tudo dependerá da interpretação da Justiça do Trabalho e do Supremo Tribunal Federal (STF) com relação à nova lei. "Cada juiz poderá declarar a inconstitucionalidade da lei nos processos que julga, há essa possibilidade e as entidades devem ir ao Supremo", diz.

Um impacto direto da norma é a precarização das condições de trabalho, segundo o professor. Uma empresa de siderurgia situada em Carapicuíba, por exemplo, que tem como piso salarial para a categoria estabelecido pelo sindicato de R$ 1.700, pode decidir terceirizar sua mão de obra para outra cidade que tenha o piso mais baixo.

A professora Dânia lembra, porém, que a Justiça do Trabalho tem aplicado em discussões sobre terceirização o que se chama de teoria do salário equânime. Nesses caso, os magistrados equiparam a remuneração dos terceirizados a dos contratados que exercem as mesmas funções.

Para Leone Pereira, a nova norma traz ainda mais insegurança ao trabalhador do que o projeto discutido no Senado. Isso se deve ao fato de haver a responsabilidade subsidiária, como a Justiça do Trabalho vem aplicando hoje e não solidária. "Esse projeto de lei desampara o trabalhador. Seria melhor a responsabilidade solidária, que eu posso escolher por quem responde pela integralidade da dívida. Com a subsidiária vai demorar mais no processo para chegar na tomadora", diz.

O presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Germano Silveira de Siqueira, afirma que foi aprovado o pior dos projetos em tramitação que regulamentam a terceirização. "Esse projeto não traz nenhuma garantia aos trabalhadores e segurança jurídica para as empresas por trazer conceitos abstratos, e deve aumentar a demanda na Justiça do Trabalho", diz. Siqueira acredita que o presidente da República, Michel Temer, deve vetar o projeto na integralidade ou parcialmente. Caso isso não ocorra, afirma que a entidade estuda ir ao Supremo contra a norma.

Entre as críticas afirma que a proposta não prevê equivalência salarial entre terceirizados e empregados, não estabelece regras para evitar acidentes de trabalho e permite a terceirização ampla, o que deve gerar precarização. Segundo ele, hoje são aproximadamente 12 milhões de trabalhadores terceirizados e 35 milhões de contratados diretamente, números que podem ser invertidos com a aprovação do texto.

Com relação ao número de acidentes de trabalho no Brasil, de dez acidentes, oito acontecem com empregados terceirizados. "O projeto é muito preocupante. Ele permite que sua companhia aérea substitua sua equipe de pilotagem por uma terceirizada", afirma.

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Centrais criticam aprovação e planejam usar tema como argumento contra as reformas

Por: Ligia Guimarães e Camilla Veras Mota

 

Após a aprovação do projeto de lei que libera a terceirização irrestrita das atividades de trabalho, as centrais sindicais afirmam que concentrarão esforços para mobilizar trabalhadores nas manifestações contra as reformas trabalhista e previdenciária. A medida foi alvo de críticas também por parte de especialistas em economia do trabalho, que dizem que a flexibilização das regras trabalhistas não tem embasamento técnico e representa grande retrocesso social.

"O trabalhador ganhará menos, trabalhará mais e ficará exposto a acidentes de trabalho. O governo Temer e o Congresso atendem somente a interesses da classe empresarial", afirma Ricardo Patah, presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT), que diz ainda ter expectativa de que o presidente vete o texto enviado para sanção. "Seguimos firmes na organização de nossas bases, cobrando a abertura de negociações e a manutenção da proibição de terceirização na atividade fim", diz nota assinada pelas seis maiores centrais.

Vagner Freitas, presidente da CUT, lembra que a lei da terceirização foi aprovada com margem mais apertada do que previa o governo e diz o resultado serve de combustível para que sua base continue pressionando os parlamentares com atos e manifestações. "Nós vamos deixar claro que eles vão perder eleitores se não votarem a favor dos trabalhadores".

O incentivo à terceirização não criará empregos e ainda fragilizará a arrecadação previdenciária, o que torna a lógica da aprovação "absurda", na opinião do pesquisador Denis Maracci Gimenez, diretor do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), do Instituto de Economia da Unicamp. "Se há tanta preocupação hoje com os gastos da Previdência, uma reforma como essa me preocupa muito mais", diz o pesquisador, que afirma que mais eficiente para reduzir custos das empresas seria baixar juros e promover uma reforma tributária que reduzisse a incidência de impostos indiretos na produção, por exemplo.

Gimenez considera falsas as premissas de que o mercado de trabalho brasileiro é pouco flexível ou que a mão de obra é mais cara que a de outros países. "O mercado de trabalho brasileiro é muito flexível, tanto que tem alta rotatividade", diz, acrescentando que, na comparação internacional, os salários dos trabalhadores brasileiros são muito baixos. Ele cita estudo que realizou em parceria com seu colega de Cesit, o pesquisador José Dari Krein, que indica que o custo horário da mão de obra na manufatura brasileira em dólar, segundo dados do Bureau of Labor Statistics dos EUA, representava em 2012 apenas 24,5% do custo na manufatura alemã, 31,5% da norte-americana, 59,6% da argentina e 57,7% da grega. "Terceirizados têm renda menor, jornada maior, rotatividade maior", diz.

Krein, doutor em economia social e do trabalho pela Unicamp, destaca que não há comprovação de que exista correlação entre flexibilizar o mercado de trabalho e gerar empregos. Cita, inclusive, estudos da OIT que apontam que tal correlação não existe. "A regulação do mercado de trabalho não foi instituída por funcionalidade econômica. É pela perspectiva de preservação da vida e da dignidade das pessoas que precisam trabalhar", diz ele, que vê na regulamentação do mercado de trabalho elemento fundamental para uma sociedade civilizada. "Isso [a aprovação] sinaliza que tipo de mercado de trabalho você quer criar".

Estudo realizado pela CUT, com base nos números da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) e do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) apontam que, em 2013, os terceirizados representavam 26,8% do mercado formal de trabalho, um total de 12,7 milhões de pessoas. Naquele ano, de acordo com o estudo, a remuneração dos trabalhadores terceirizados foi 24,7% menor que o dos efetivos, embora os terceirizados trabalhassem, em média, três horas a mais que os contratados.

Além disso, 78,5% do total de terceirizados ganhavam, no máximo, três salários mínimos. O estudo da CUT alerta também para a grande incidência de "calote" por parte das empresas entre os trabalhadores terceirizados. "É frequente o desaparecimento das terceirizadas ao final dos contratos sem o devido pagamento das remunerações, rescisões e demais obrigações trabalhistas", diz o relatório, que aponta ainda que os acidentes e mortes no trabalho são mais comuns entre os terceirizados, já que as empresas investem menos em medidas preventivas.

Uma série de estudos publicados por Marcio Pochmann, à época presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostrou que o trabalho terceirizado tem, no geral, tempo de permanência menor no emprego. Do total de empregados com contrato de trabalho de 12 meses em 2000, 58% eram terceirizados. Já entre aqueles com mais de cinco anos na mesma empresa, apenas 7% eram terceirizados. Na prática, isso pode significar menor tempo de contribuição com a Previdência, por exemplo. (Colaborou Tainara Machado, de São Paulo)

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Especialistas não veem mais estímulos à "pejotização"

Por: Raphael Di Cunto

 

O projeto aprovado pela Câmara dos Deputados anteontem para regulamentar os contratos de terceirização não deve mudar o cenário do que é conhecido como "pejotização" - a demissão de empregados pelo regime de CLT para que sejam contratados como pessoas jurídicas (PJ). Embora a oposição diga que há margem para isso no texto, advogados trabalhistas afirmam que a Justiça trabalhista dará ganho de causa aos pejotizados e que não vale o risco para as empresas.

"Isso é uma fraude e não vai mudar", afirmou o advogado Fabiano Zavanella, sócio do Rocha, Calderon e Advogados Associados. "Se houver relação de pessoalidade, habitualidade e subordinação, é uma relação trabalhista. A empresa pode dizer que não, que a nova lei a ampara, mas o juiz do trabalho vai avaliar toda a norma jurídica e atestar a relação de trabalho, sem sombra de dúvida", disse.

Ele lembra, contudo, que essa é uma via de mão dupla, porque, ao mesmo tempo em que a empresa se beneficia por não pagar encargos trabalhistas e previdenciários do funcionário, diminuindo seus custos, ele também recebe vantagens por atuar como PJ, ao recolher menos impostos. Ambos cometem uma fraude nessa relação.

A oposição ao governo argumenta, com base em dois pontos do texto aprovado, que o projeto permite regularizar a pejotização: o artigo que afirma que "não se configura vínculo empregatício entre os trabalhadores, ou sócios das empresas prestadoras de serviços [...] e a empresa contratante"; e que o capital mínimo da empresa será de R$ 10 mil, caso tenha até dez funcionários (ou seja, não há um número mínimo de empregados, permitindo empresas em que o prestador de serviço é o próprio dono).

Na avaliação do advogado Ricardo Meneses dos Santos, do escritório Kuster Machado, contudo, a Justiça do Trabalho continuará reconhecendo o vínculo empregatício, por isso as grandes empresas serão desestimuladas. "Dá mais prejuízo do que lucro e as empresas já perceberam isso."

Para o relator do projeto, deputado Laércio Oliveira (SD-SE), ex-empresário do setor de serviços e vice-presidente da Confederação Nacional do Comércio (CNC), o PJ foi uma fórmula encontrada pelas empresas para resolver o problema da impossibilidade de terceirizar a atividade-fim. "Agora que estará permitido com a sanção, a pejotização nem vai mais existir em dois anos."

Alison de Sá Alves, assessor técnico do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), reconhece que o projeto não traz a permissão literal para a pejotização, mas defende que é preciso olhar todo o contexto de reformas na legislação trabalhista. "A pejotização já existe e é uma realidade nas empresas." Ele lembra que o outro texto da terceirização, que ficou parado no Senado, tinha trava para impedir a substituição.