PMs vão à Justiça para barrar charge no ES

Bruno Dalvi 
23/03/2017
 
 
Por mensagens, eles incentivam abertura de ações judiciais para evitar publicação da ‘Gazeta de Vitória’

-VITÓRIA- Cinco ações judiciais movidas por policiais militares pedem indenização por danos morais contra o jornal “A Gazeta de Vitória”, no Espírito Santo, por causa de uma charge publicada em 18 de fevereiro, durante o carnaval na capital do estado. Os casos chegaram à Justiça após uma mobilização via WhatsApp, que conclamou militares a entrarem com ações contra o periódico, e vêm sendo investigados pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) como possível captação irregular de clientes por advogados.

Quatro ações tramitam na Grande Vitória com conteúdo idêntico e pedem, liminarmente, a retirada de circulação da charge em todos os meios de comunicação da Rede Gazeta. Todos os pedidos de liminar foram negados. Há uma quinta ação na cidade de São Mateus, no norte do estado.

A charge que motivou as ações foi publicada durante a paralisação da Polícia Militar este ano, que durou 22 dias, período no qual ocorreram 200 assassinatos. Com título “Carnaval 2017”, a imagem mostra o encontro de foliões fantasiados de bandido e policial. O primeiro avisa que é um policial fantasiado de bandido, e o segundo responde “e eu, um ladrão fantasiado de policial”, com uma arma em punho anunciando um assalto.

Em um dos despachos, o juiz Alexandre de Oliveira Borgo, da cidade de Serra, na Grande Vitória, afirmou que não vê “ofensa direta à dignidade” do autor da ação e negou o pedido de liminar. Ele também justificou sua decisão argumentando que a charge não extrapola o direito de livre manifestação:

“Verifico que a charge demonstra um contexto de carnaval, uma data comemorativa em que as pessoas se fantasiam de determinados personagens reais e da ficção. Dessa forma, aparentemente não vislumbro em cognição sumária qualquer ofensa direta à dignidade do autor nem à categoria dos policiais, eis que a charge não se dirige diretamente ao autor nem à categoria mas apenas relata uma situação cotidiana e se refere especificamente a dois personagens específicos e fictícios e em período de carnaval. Ao que parece, a charge não extrapolou o direito de livre manifestação de forma suficiente a ofender outros direitos e garantias constitucionais”, diz um trecho da decisão.

A advogada dos quatro policiais militares que entraram com ação na Grande Vitória, Neiva Costa de Farias, afirmou que a charge foi publicada num momento de “extrema sensibilidade”, por causa da greve dos militares, e disse desconhecer a existência das mensagens de áudio e de texto que convocam policiais a entrarem com ação.

OFENSA À CATEGORIA

— Lá (na charge) havia a comparação; o bandido ser comparado ao policial e o policial ser comparado ao bandido. E isso, em linha bem simples, é inadmissível. Então, os policiais que eu represento sentiram essa ofensa. Houve uma ofensa pessoal e à categoria da qual eles fazem parte, por ser comparado ao personagem que é o arquirrival dele, que ele combate todos os dias — afirmou a advogada.

A mensagem divulgada via WhatsApp contém um e-mail para o qual os policiais devem encaminhar os documentos para entrar com ação e, também, um telefone de contato, além de informar que não haverá custos. A Ordem dos Advogados do Brasil no Espírito Santo (OAB-ES) abriu procedimento para apurar possível captação irregular de clientes.

Em nota conjunta, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), a Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner) e a Associação Nacional de Jornais (ANJ) afirmaram que estão acompanhando com preocupação as ações judiciais:

“Recorrer à Justiça é um direito constitucional assegurado a todos. Mas a ação coordenada contra determinada publicação jornalística pode ganhar contornos de assédio judicial. Ações judiciais coordenadas têm sido feitas com o objetivo de constranger o trabalho jornalístico, com a Justiça sendo utilizada como instrumento de enfrentamento da liberdade de expressão e do livre exercício do jornalismo. É positivo assinalar que diferentes juízes do estado já negaram liminar para retirar a charge dos meios eletrônicos em que está publicada. A Abert, a Aner e a ANJ respeitam o direito de ação por parte de quem se sentir ofendido ou lesado, mas repudiam o abuso no exercício de tal prerrogativa com o intuito de impedir a liberdade de expressão e o livre exercício do jornalismo. As entidades lembram, ainda, que não existe sociedade livre sem o direito à informação, à reflexão, e sem uma imprensa livre. E preservar esta liberdade é uma missão vital para todos nós.”

O diretor de jornalismo de “A Gazeta de Vitória”, Abdo Chequer, classificou as ações como uma forma de intimidação.

— As ações são normais, a gente já enfrentou outras e vai enfrentar essas. E quando vêm assim coletivamente é uma clara tentativa de intimar a imprensa. Não há outra maneira de ver isso. A missão da Rede Gazeta sempre é estar a serviço do povo do Espírito Santo e do desenvolvimento do Espírito Santo, informando as coisas principais e mais importantes à população. A Rede Gazeta não tem dúvida sobre o trabalho que fez e tem que fazer sempre — disse Chequer.

 

O globo, n. 30544, 23/03/2017. País, p. 11