Castigo sem crime

Luiz Belluzzo e Gabriel Galípolo

04/04/2017

 

 

Especialistas das finanças proclamam os efeitos deletérios dos direitos sociais, exigindo a revisão da Constituição de 1988, dizem eles, a culpada pela crise das finanças públicas - não obstante os superávits primários de 1998 a 2013.

A pertinente e necessária demanda por equilíbrio ao longo do tempo entre receitas e despesas públicas encontra nos aposentados e trabalhadores os criminosos responsáveis pelo "ataque" ao orçamento público.

Sob o véu diáfano da economia científica (sic) abriga-se no orçamento o conflito de interesses entre quem recebe e quem paga no esforço coletivo de construção da riqueza social e de sua distribuição entre agentes e pacientes.

Uma "Análise da Carga Tributária no Brasil" publicada em 2015 pela Receita Federal apontou a maior incidência sobre bens e serviços, que representam 51,02% do total da carga tributária. Esses tributos incidem sobre os gastos da população na aquisição de bens e serviços, independentemente do nível de renda. Pobres e ricos pagam a mesma alíquota para comprar o fogão e a geladeira, mas o Leão "democraticamente" devora uma fração maior das rendas menores.

Já os tributos incidentes sobre renda contribui com parcos 18,02% para a formação da carga total, enquanto os impostos sobre o patrimônio representam desprezíveis 4,17%, superando apenas os tributos sobre transações financeiras, que contribuem com 1,61% da carga tributária.

No liberal EUA aproximadamente 45% da carga tributária incide sobre a renda, lucros e ganho de capital e menos de 20% sobre bens e serviços. Na desenvolvida Dinamarca a participação da tributação sobre renda, lucros e dividendos chega a quase 65% da carga.

Comparações de carga tributária devem ser feitas com cuidado, mas os dados não deixam dúvida de que o Brasil ocupa o pódio na disputa entre as estruturas tributárias mais regressivas do mundo.

Para o Comando de Caça aos Direitos Sociais, as narinas do Dragão da Maldade fumegam as irracionalidades das demandas das camadas subalternas, aquelas que não cabem no Orçamento, flagrante no déficit de R$ 151,9 bilhões da Previdência Social em 2016.

(...)

Após sete anos de superávits sucessivos, a previdência urbana fechou 2016 com déficit de R$ 46,8 bilhões, decorrente da queda de 6,5% na arrecadação e aumento de 7,4% nos gastos com pagamento de benefícios em relação a 2015. As bocas tortas do austericídio não se cansam de sugerir que a fornicação desregrada do passado produziu um envelhecimento súbito e sincronizado da população urbana em 2016. Esse descontrole imaginário da libido coletiva despreza o desemprego dobrado de 2014 para cá, combinado com o aumento de pedidos de aposentadoria - um clássico ante os anúncios de reformas que prometem penalizar os trabalhadores.

A Previdência Rural, criticada como a principal responsável pelo chamado rombo, pagou R$ 113 bilhões em benefícios rurais e arrecadou R$ 8 milhões em 2016. Segundo estudo do Ministério do Desenvolvimento Agrário, 83,6% dos ocupados agrícolas brasileiros não contribuem para a Previdência, já que 67% não são assalariados.

Ana Magalhães, da agência Repórter Brasil, realizou um trabalho edificante ao ir a campo e dar vida aos números da previdência. O agricultor Espedito Eusébio de Souza, de 73 anos, ao entrar para o grupo de 9,5 milhões de pessoas beneficiadas pela Previdência Rural, retirou sua família da linha da miséria, não precisando mais caminhar 60 km do interior do Piauí até a divisa com Pernambuco em busca de "uma diariazinha", e conseguiu pagar R$ 4.800 por um poço artesiano, em parcelas.

Na cidade de Paulistana, no Piauí, onde as aposentadorias rurais injetaram R$ 77 milhões no ano de 2016, a reportagem de Ana Magalhães observou a simbiose entre distribuição e formação da renda: segundo comerciantes do município as vendas aumentam 40% na época do pagamento dos benefícios.

A dissonância entre a ciência (sic) dos sábios e a vida real fica patente na entrevista do prefeito da cidade, que sinaliza ser favorável à reforma da previdência, mas reconhece: "Quando as aposentadorias eram de meio salário mínimo, não dava para nada. Quando passou a ser de um mínimo, os comerciantes viram o dinheiro circular". O valor médio dos benefícios pagos pela Previdência de janeiro a dezembro de 2016 foi de R$ 1.283,93. A maior parte dos benefícios (68,6%) - incluídos assistenciais - pagos, em dezembro de 2016, tinha valor de até um salário mínimo, contingente de 23,1 milhões de benefícios.

"Cientistas" da Economia malsinam: "O sistema de Previdência Rural atual funciona como um programa de distribuição de renda, como o Bolsa Família, e isso é um erro". Não por acaso, a ironia que Dostoiévski registrou em "Crime e Castigo": "O senhor Liiebiesiátnikov, que está a par das novas ideias, explicou-me, não há muito tempo, que a compaixão, em nossos tempos, é proibida pela ciência e que é assim que se procede na Inglaterra, onde existe a Economia Política".

Os brasileiros deram na Constituinte os primeiros passos para alcançar os direitos do indivíduo moderno e hoje aspiram à liberdade não só porque têm direito a escolher seu presidente, mas, sobretudo, porque anseiam exercer os direitos da cidadania, o que ultrapassa a simples condição de eleitor. É uma ilusão imaginar que mais um acordo "pelo alto", respaldado numa suposta "racionalidade econômica" possa encaminhar uma solução "estrutural" para o financiamento dos encargos e responsabilidades do Estado brasileiro.

Os acólitos da "racionalidade" são convidados a ler o discurso de Franklin Delano Roosevelt em 1935 ou o relatório do liberal Sir William Beveridge de 1942, o pai do "Welfare State" britânico.

Beveridge apontou os "Demônios gigantes da vida moderna" que os governos estavam obrigados a enfrentar: carência, doença, ignorância, miséria e inatividade. Proclamou que a ignorância é uma erva daninha que os ditadores cultivam entre seus seguidores, mas que a democracia não pode tolerar entre seus cidadãos.

O advogado Lùzin, personagem de "Crime e Castigo", propagandista das ideias do liberalismo econômico pondera: "Há um limite para tudo. A Teoria Econômica não é ainda um convite ao homicídio". Ainda. Por enquanto, o senhor Espedito escapou.

 

Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.

Gabriel Galípolo é professor do Departamento de Economia da PUC/SP e sócio da Galípolo Consultoria

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4228, 04/04/2017. Opinião, p. A13.