Destruição das garantias na recuperação judicial

António Aires

05/04/2017

 

 

Com a recessão instalada no país, o Ministério da Fazenda busca saídas para ampliar o crédito com juros mais baixos, entre as quais o fortalecimento das garantias e sua execução no âmbito da recuperação judicial. Iniciativa louvável e necessária, pois o que em regra se tem visto nas recuperações judiciais é o crescente desrespeito às garantias, principalmente àquelas oferecidas em operações financeiras.

A importância das garantias sobressai pois as instituições financeiras são intermediadoras de recursos, captando-os por meio de depósitos a prazo e outros produtos que oferecem a seus clientes (CDBs, etc).

Nessa intermediação, entre poupadores e tomadores, os bancos estão sujeitos a uma série de regras de capital mínimo e controle de riscos, para assegurar sua higidez financeira. Porém, se houver inadimplemento generalizado, os riscos terão potencial de gerar o temível "risco sistêmico".

Portanto, é de estranhar que, junto com as propostas de fortalecimento da segurança jurídica das garantias que têm sido levadas ao Ministério da Fazenda, se insiram propostas no sentido diametralmente oposto, que, se prevalecerem, transformarão em lei a corrosão das garantias que já vem acontecendo no Judiciário.

Neste cenário, as instituições 1- passarão a assumir mais risco ao emprestar, exigindo mais reservas para proteger seu capital e depositantes, traduzindo-se em aumento da taxa de juros, e 2- reduzirão drasticamente a oferta de crédito.

(...)

Deixemos claro que a atual lei já expressamente exclui da recuperação e da falência a propriedade fiduciária (garantia por excelência das instituições financeiras), permitindo assim que seus detentores prossigam com a execução, além de deixar claro que os direitos dos credores contra os terceiros garantidores, bem como as garantias reais, não são afetados pela recuperação ou pelo plano de recuperação judicial. Entretanto, o Judiciário, paradoxalmente, vem deixando de aplicar esses dispositivos legais em sua plenitude, "relativizando-os".

Eis algumas das propostas que estão sendo submetidas ao Ministério:

Poder-se-ia tentar justificar tantas "bondades" com o momento difícil que as empresas brasileiras estão atravessando. Entretanto, tais alterações nada têm de provisórias. Mesmo quando a economia se recuperar permanecerão, sem nenhum objetivo senão facilitar a vida dos devedores inadimplentes.

Se esse estado de coisas é provisório, porque não se criar um regime especial para empresas estratégicas em dificuldade, como as leis Prodi (1979) e Prodi bis (1999) na Itália?

Uma vez convertidas em lei tais propostas, o Brasil afasta-se da realidade econômica e abraça o distributivismo, às custas da solidez do sistema financeiro. Distancia-se, também, da direção tomada pela esmagadora maioria dos países desenvolvidos.

Tomemos por exemplo a Diretiva Europeia 2002/47/EC, o Bankruptcy Code dos Estados Unidos de 1978, o Insolvency Act de 1986 do Reino Unido, a Lei de Insolvência alemã de 1999 ou o Decreto Real italiano de 1942, todos estatutos falimentares que asseguram a satisfação do credor com o produto da garantia do bem onerado com exclusividade. Até mesmo a China, no seu novo estatuto falimentar, aprovado em 2007, estabelece claramente que o credor tem direito a se satisfazer com exclusividade com os ativos recebidos em garantia.

Só após tal satisfação, se inicia o pagamento dos demais créditos de acordo com sua classificação. Essas jurisdições não tentam, direta ou indiretamente enfraquecer as garantias. Mesmo quando permitem, como no caso dos EUA, a substituição ou a venda do bem ou direito onerados mediante decisão judicial, fazem-no exigindo que o credor em questão seja ressarcido do seu valor ou lhe seja oferecida, em troca, garantia adequada.

Philip Wood, o conhecido autor de direito comparado bancário e de mercado de capitais, afirma, com a clareza habitual: "A garantia precisa prevalecer na insolvência, que é onde é mais necessária. Garantia que é válida entre as partes mas não perante os credores do devedor é fútil. Leis de insolvência que congelam, atrasam ou enfraquecem ou retiram a prioridade da garantia na insolvência destroem o que a lei criou".

O que se pretende com as alterações a que nos referimos, é impor desmedido sacrifício aos credores, o que até a lei anterior vedava 1. Esquecem-se os proponentes de que a LRF não contempla somente a recuperação da empresa, mas também o atendimento aos interesses dos credores. Afinal, a recuperação judicial é (ou deveria ser) um instrumento de pagamento e não de calote.

Que o Ministério da Fazenda não se iluda com as propostas ora criticadas e siga no sentido de fortalecer o crédito e o seu recebimento. Contribuirá para que o horizonte econômico seja desanuviado e não semeará maus ventos, para o país colher péssimas tempestades.

1- Decreto - Lei 7661/45, ao tratar da concordata

 

António Aires é sócio de Demarest Advogados.

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4229, 05/04/2017. Opinião, p. A10.