Juízos políticos e garantias jurídicas

José Eduardo Faria

28/03/2017

 

 

Dias após o término das delações premiadas de executivos da maior empreiteira investigada pela Lava Jato, advogados voltaram a denunciar o descumprimento da Constituição pelo pessoal de Curitiba e a censurar o protagonismo do STF, acusando-o de criar regras. O embate entre operadores jurídicos faz parte do cotidiano forense. Na defesa de seus interesses, cada corporação recorre a uma técnica hermenêutica – da interpretação secundum legem ou literal, valorizada por advogados de defesa em nome do garantismo, à interpretação praeter legem, mais expansiva e considerada por procuradores e juízes a mais adequada à aplicação de princípios constitucionais, como o da moralidade.

Por trás desse debate estão os problemas decorrentes do impacto das transformações históricas sobre a arquitetura da ordem jurídica do País. No decorrer do século 20 o legislador brasileiro acostumou-se a editar normas igualitárias, gerais e abstratas, concebidas com base em rotinas sedimentadas, práticas sociais homogêneas e expectativas comuns de justiça. Isso era a garantia de que o custo de imposição de novas normas seria baixo. Também permitia a sistematização das normas num código, abrangendo atividades e atores sociais sem levar em conta suas particularidades. E ainda autorizava os juristas normativistas a afirmar que o juiz deveria encontrar a lei, e nunca fazê-la. Mudanças ocorridas após a industrialização do País, entre as décadas de 1950 e 1970, exauriram essa técnica legislativa. A industrialização e a urbanização mudaram a pauta moral da sociedade, estilhaçaram as expectativas comuns de justiça e acarretaram novos tipos de conflito.

A sociedade tornou-se de tal modo dinâmica e complexa que as rotinas foram corroídas. A criação de novos padrões comuns tornou-se inviável. E a ideia de uma cultura comum que calibrasse as expectativas da coletividade cedeu lugar a uma heterogeneidade de atores sociais, o que multiplicou as situações particulares. Até os anos 70 o legislador acreditou na ideia de tutelar essas situações por meio de códigos. A partir daí, a tutela de situações díspares exigiu tal número de artigos que levou os códigos a perder identidade doutrinária. Para dar conta das especificidades de cada setor social, a saída do legislador foi substituí-los por leis especiais.

Mas, à medida que elas se multiplicaram, passando de 66 mil leis para 141 mil, entre 1978 e 2006, a ordem jurídica perdeu unidade lógica. E os códigos binários implícitos na concepção de regras igualitárias revelaram-se rígidos demais para dar conta de situações multiformes. Em vez de se prender à distinção entre lícito e ilícito, o legislador optou por normas com textura aberta, o que mudou as estratégias de interpretação. A adjudicação tradicional, baseada na interpretação secundum legem, cedeu vez a ponderações. Defensores de uma interpretação literal alegam que, ao dar sentido a conceitos indeterminados no julgamento de uma ação, o juiz se torna colegislador. Já os operadores jurídicos não normativistas lembram que a interpretação praeter legem lhe permite adequar melhor a ordem legal à complexidade social.

Nesse cenário, são claras as intenções dos garantistas com relação à Lava Jato. Ao enfatizarem uma concepção de direito codificado ou de leis especiais, eles circunscrevem a defesa dos acusados à nulidade e à prescrição. Isso lhes permite criticar as interpretações das normas mais abertas por juízes e procuradores e denunciar violações processuais. Ainda que não tenha dado certo no julgamento de vários réus no caso do mensalão, o script é apontar vícios formais, pedir a nulidade das acusações e deixar o tempo correr até a prescrição das denúncias. Já os procuradores e juízes se valem da ordem jurídica com normas mais abertas para exigir que os advogados de defesa apresentem provas e documentos que comprovem a inocência de seus clientes.

Estamos diante de um impasse entre legalistas e moralistas? Não creio. Em 29 de março de 1997, Ronald Dworkin – docente de Oxford e Nova York partidário da supremacia judicial – discutiu essa polêmica nesta página. Ele apontou a incompatibilidade da visão garantista do direito com a dinâmica de sociedades complexas. E também chamou a atenção para o risco de tensões institucionais nos casos difíceis – aqueles em que, quando a interpretação a ser dada a um texto legal não é clara, o juiz não tem outra opção a não ser inovar, fazendo um julgamento político. Mas, se as garantias fundamentais forem preservadas, essa prática não é antidemocrática, advertiu. Para Dworkin, esse julgamento é sempre polêmico, por suscitar divergências sobre os princípios políticos que melhor representam a tradição moral de uma comunidade. As divergências refletem um desacordo mais profundo sobre qual das diversas justificativas em debate seria moralmente superior.

Segundo ele, apesar de muitas vezes não ter escolha a não ser tomar decisões morais e políticas, o juiz não elabora outra lei por ter a “visão da integridade” do ordenamento. Isso porque, ao aplicar num caso concreto conceitos indeterminados de uma lei, age como um romancista ao qual foi solicitado um novo capítulo na sequência do que já foi escrito. O juiz não pode assim começar um romance próprio. Deve só desenvolver temas relacionados a partir da trama já tratada no romance inacabado. Com isso ele mantém a coerência com o passado, ao mesmo tempo que ajusta o romance (a jurisprudência) conforme o desdobrar do enredo (ou dos valores da comunidade).

A visão de integridade mostra como o juiz pode ser criativo, sem contar apenas com suas convicções pessoais, tornando a lei mais consentânea com o senso histórico de justiça da comunidade, diz Dworkin.

(...)

 

PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP E PROFESSOR DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS (GVLAW)

 

 

O Estado de São Paulo, n. 45087, 28/03/2017. Espaço Aberto, p. A2.