O mau exemplo

03/04/2017
 
 
Tema em discussão : Autonomia do Banco Central (...)

Uma peculiaridade do Brasil é ter testado tantos modelos de política econômica que se tornou um laboratório à disposição de quem se dispuser a estudar a diversidade do poder de criação dos economistas nacionais. Sendo que muitos passam a vida em embates contra a racionalidade.

Entre inúmeros conceitos econômicos em torno dos quais especialistas e políticos se digladiam está a autonomia do Banco Central. A inevitável contaminação ideológica do debate produz bizarrices. Como a ideia de o BC ser capturado por interesses malévolos do capitalismo financeiro e, assim, preservar juros nas nuvens e espalhar miséria pelo país. O ícone desta fantasia foram os filmetes da campanha à reeleição de Dilma Rousseff produzidos por João Santana e Mônica Moura, em que banqueiros faziam a comida desaparecer da mesa do pobre. Foi um grande estelionato eleitoral. No fim, Dilma perdeu o mandato e o casal foi preso.

Dilma, na campanha, centrou fogo contra qualquer autonomia do BC, política defendida pelo seu adversário mais forte, o tucano Aécio Neves. Entre vários argumentos, há o de que o manejo dos juros é tão importante que apenas quem for eleito tem legitimidade para tratar do assunto. O problema é que voto não dá conhecimento técnico, nem bom senso.

A própria Dilma Rousseff era, ela mesma, um forte argumento contrário à interferência na ação do BC. Pois foi o que fez, ao induzir a autoridade monetária, presidida por Alexandre Tombini, a reduzir os juros na base da caneta. Assim ocorreu e, de 2011 para 2012, as taxas caíram de 12,5% para 7,25%. Tudo devidamente faturado politicamente.

Como esperado, a inflação subiu de patamar — passou para a faixa dos 6%/6,5%, este o teto da meta de 4,5%. Depois, vitoriosa na campanha, Dilma não sobreviveu à mistura das criminosas fraudes contábeis, da recessão e da disparada do desemprego. Com um BC sem credibilidade — palavra-chave em política monetária —, a inflação atingiu a zona de extremo perigo dos dois dígitos.

Não há o que discutir sobre o conceito da autonomia de bancos centrais. Existe o exemplo mais citado de todos, o Federal Reserve, o BC americano, em que o diretor-geral tem mandato fixo, responde ao Senado, e a instituição tem longa história de bom funcionamento a favor da estabilidade econômica.

O curioso é que o próprio PT acumulava uma experiência bem-sucedida, no primeiro governo Lula, em que o presidente recém-empossado teve a sensatez de manter o modelo de autonomia do BC, com Henrique Meirelles, adotado por FH na gestão de Armínio Fraga. A dosagem de juros e aperto fiscal feita pela dupla Palocci, da Fazenda, e Meirelles trouxe a inflação de volta ao terreno do dígito único.

O mau exemplo foi o de Dilma. E mesmo assim, por força religiosa da fé ideológica, o partido não enxerga o que vê.

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'Barca furada’

José Guimarães 

03/04/2017

 

 

Tema em discussão : Autonomia do Banco Central (...)

Trata-se a independência do Banco Central como se fosse panaceia para os problemas do Brasil. O BC já dispõe de autonomia operacional para execução da política monetária conforme as metas de inflação fixadas pelo Poder Executivo por intermédio do Conselho Monetário Nacional. Essa autonomia garante ao BC fazer suas escolhas e dosar instrumentos que garantem o alcance da meta.

Autonomia não significa garantir a um segmento burocrático o poder de agir sem compromisso com o que foi definido pela autoridade eleita com a legitimidade das urnas. Órgãos burocráticos devem ter poder decisório, mas no limite de metas definidas por quem foi eleito pelo povo.

Os que defendem a independência, ou “autonomia formal”, sustentam que o BC está sujeito a pressões do Executivo para relaxar a política monetária e facilitar adoção de meios para impulsionar a atividade econômica. Mas esquecem que a burocracia estatal poderia ser capturada por conglomerados financeiros que têm interesses nas decisões do BC.

A história econômica do regime de metas de inflação no Brasil (1999 a 2013) desqualifica os argumentos dos que advogam a autonomia formal do BC. No governo Lula (2003-2010), o BC teve apenas um presidente e, no de Dilma, o cargo foi ocupado por Alexandre Tombini. No período, observou-se como regra o enquadramento da inflação anual efetiva dentro da meta. Os calendários de reunião do Copom foram publicados e integralmente observados. As decisões do Comitê são divulgadas ao público.

Há, no Brasil, um ambiente de estabilidade da direção do BC, e de ampla transparência de dados, informações e decisões. Esse quadro confirma a plena autonomia operacional do BC para responder aos choques de preços no curto prazo e para suavizar a variação da inflação ao longo dos ciclos econômicos. Há credibilidade da política monetária, embora possa ser também questionada, como a atual política de juros.

Em vez de se insistir na barca furada da independência do BC, é hora de nos voltarmos para a retomada do desenvolvimento, com geração de empregos, renda e justiça social. O desafio é aperfeiçoar a capacidade de coordenação dos instrumentos de política econômica (fiscal, monetário e cambial), ampliar mecanismos de financiamento do investimento de longo prazo, aprimorar modelos de parceira público-privada, ampliar a estrutura institucional associada à inovação e ao desenvolvimento científico e tecnológico e tomar medidas que possibilitem maior justiça social, com sistema tributário e fiscal moderno e justo, que não mais privilegie a elite brasileira.

Quem tem de definir a política econômica do país, com forte impacto no dia a dia da população, é um governo eleito, e não técnicos financeiros. O governo não pode abrir mão de sua autoridade monetária. Mesmo porque ninguém garante que maior independência do BC signifique menores índices de inflação e menos privilégios para o setor financeiro.

*José Guimarães é deputado federal (PT-CE).

 

O globo, n. 30555, 03/04/2017. País, p. 14