O Supremo e o ativismo judicial

José Eduardo Faria

11/03/2017

 

 

Nas sabatinas promovidas pelo Senado para a escolha dos nomes indicados pelo chefe do Executivo para o Supremo Tribunal Federal, o protagonismo da magistratura nos conflitos institucionais – conhecido como ativismo judicial – foi um dos temas mais discutidos em pelo menos duas oportunidades. As respostas dos sabatinados – ambos professores de Direito Constitucional – dão a medida das diferenças entre eles, em matéria de visão de mundo, formação teórica, rigor metodológico, consistência doutrinária e compreensão do alcance das atribuições funcionais que pretendiam assumir.

Uma das sabatinas foi a de Alexandre de Moraes. Ao ser interrogado sobre o tema do ativismo judicial, ele fez digressões sobre temas de teoria do Estado, como a questão do equilíbrio entre os Poderes. Falando a um número expressivo de senadores investigados pela Operação Lava Jato, e de cujos votos dependia para alçar ao STF, também afirmou que o Judiciário tem legislado indevidamente, intervindo – sem legitimidade popular – nas esferas de ação do Legislativo. A seu ver, quando a atuação de uma Corte Suprema se torna “acentuada”, surge um embate com o Congresso, que pode abrir caminho para uma guerrilha institucional sem ninguém para arbitrar o conflito. Pelo que os jornais publicaram, ao enfatizar o equilíbrio entre norma e interpretação e criticar o subjetivismo de setores da magistratura ele deu a entender que privilegiará uma visão formalista do direito positivo – o que os políticos assustados com as investigações da Lava Jato chamam de garantismo.

A outra sabatina foi a de Luís Roberto Barroso e ocorreu há quatro anos. Ao responder às perguntas sobre o mesmo tema, ele fez uma distinção entre judicialização da política e ativismo judicial. Para Barroso, a judicialização é um fenômeno resultante da crescente complexidade socioeconômica do País, o que obrigou a Constituição a ter de tratar de uma ampla gama de matérias que antes eram deixadas para a legislação ordinária. Dada a dificuldade de disciplinar essas matérias por meio de regras precisas e objetivas, o legislador constitucional optou por normas programáticas e conceitos indeterminados, como os que valorizam a dignidade da pessoa humana, a boa-fé e a moralidade. Isso mudou drasticamente o significado e a importância da aplicação do direito. Com uma textura mais aberta, essas normas implicam ponderação. Já as regras jurídicas, por terem uma textura fechada, pressupõem subsunção. Por não compreenderem essa mudança, os juristas mais conservadores acusam o STF de ir além de seu papel de guardião da Constituição. A modificação na atuação da Corte foi estimulada por duas outras inovações da Constituição: o aumento da jurisdição do Ministério Público para fora da área penal e a obrigatoriedade de instalação das Defensorias Públicas estaduais. Destinadas a fortalecer a redemocratização, essas medidas ampliaram as reivindicações de justiça por parte da sociedade, multiplicando o número de demandas levadas aos tribunais.

Já o ativismo judicial é uma estratégia mais expansiva e proativa de interpretação do direito, usada pelos juízes para maximizar o sentido e o alcance das normas constitucionais. Mesmo que não se confunda com livre criação do direito, essa estratégia hermenêutica pode gerar tensões institucionais, seja por abrir caminho para a politização da justiça, seja por causa da falta de capacidade institucional do Judiciário para decidir determinadas matérias. Ainda assim, no cotidiano forense, essa estratégia assegura aos juízes a flexibilidade de que necessitam para lidar com problemas não contemplados de modo preciso e específico pela Constituição, lembrou Barroso. Como a ordem jurídica conta com um número cada vez mais expressivo de conceitos indeterminados e de normas principiológicas, dada a complexidade socioeconômica do País, o ativismo judicial está associado a uma participação mais ampla da Justiça na concretização dos valores e fins constitucionais, ampliando a interferência dos tribunais nos espaços de atuação dos demais Poderes.

O que se viu nas duas sabatinas foram concepções distintas sobre o protagonismo do STF nos conflitos institucionais. O primeiro sabatinado se insere numa corrente normativista, que vê o texto da Constituição como um limitador objetivo em matéria de interpretação do direito. Já o segundo parte da premissa de que a fundamentação das decisões judiciais teria mais importância do que a própria norma constitucional, revelando-se adepto de um constitucionalismo argumentativo e de princípios – corrente para a qual o STF, ao interpretar a Constituição, tem de ser sensível ao impacto de suas decisões sobre setores minoritários da coletividade. A primeira corrente vê o ativismo judicial como problema. A segunda o vê como parte de uma solução capaz de rever injustiças históricas em matéria de poder e riqueza, causadas por dirigentes e parlamentares eleitos.

Não se trata de saber, com base nesse debate, quem é progressista e quem não o é. Trata-se, sim, de identificar quem é capaz de julgar levando em conta não só o direito, mas também as transformações da sociedade, podendo assim influenciar o STF na tomada de decisões voltadas para a regeneração da representatividade democrática e a superação de um momento institucional difícil. A trajetória do STF pode ser vista pelo nível da qualidade de formação de cada um de seus membros, pela profundidade ou ligeireza do que dizem, pela consistência ou superficialidade de seus despachos, pelos votos inovadores que pronunciam ou plágios de que são acusados. Heterogêneo na composição e, portanto, imprevisível nas suas decisões e nem sempre imune a pressões, o STF tem de tudo: de ministros que enriquecem o debate público por meio de votos cujo teor pode ser criticado, mas que, pela solidez de seus argumentos, balizam o futuro das instituições; aos que primam pelo oportunismo, preocupados apenas em garantir a sobrevivência de seu grupo político ou de quem os indicou.

 

* JOSÉ EDUARDO FARIA É PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP E PROFESSOR DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS (GVLAW)

 

 

O Estado de São Paulo, n. 45070, 11/03/2017. Espaço Aberto, p. A2.