A guerra foi perdida

16/04/2017

 

 

Embora a agenda de discussões no país esteja muito concentrada na reforma da Previdência e em assuntos correlatos à crise política — Lava-Jato, eleições de 2018 —, há temas também em debate, e da mesma forma relevantes, embora não tenham para a sociedade a emergência de questões ligadas de maneira mais concreta e visível à vida das pessoas.

Um desses temas são as drogas, no centro de um choque de opiniões no mundo inteiro, em que se digladiam defensores da descriminalização do consumo, para que o usuário seja tratado como caso de saúde pública, e os que dão prioridade ao enfrentamento policial e militar do problema. A guerra tradicional.

Nada é simples no debate, porque o negócio dos barões das drogas também se articula com o contrabando de armas, ambos usuários de esquemas de lavagem de dinheiro. Atividades que necessitam mesmo de investigação e repressão. Elas transitam num universo perigoso de criminalidades. Toda a problemática, porém, fica menos complexa quando é abordada pela ótica do usuário, a maior vítima nesse drama.

A defesa da descriminalização de drogas parte de uma base sólida de argumentação: se a via policial-militar fosse eficaz neste enfrentamento, a mais poderosa e rica nação do mundo, os Estados Unidos, teria erradicado os traficantes colombianos e mexicanos, para lembrar os mais poderosos e próximos à fronteira americana. Dezenas de bilhões de dólares já foram gastos, e incontáveis pessoas morreram nesta guerra, e o número de usuários não para de aumentar.

Há vários exemplos bem-sucedidos de descriminalização, em que usuários e mesmo portadores de pequenas quantidades de drogas não são presos e entram em programas de recuperação. Evita-se, dessa forma, trancafiar jovens ao lado de bandidos formados. Saem da cadeia, portanto — aí sim —, graduados em tráfico.

Tramita no Supremo processo sobre um preso apanhado com pequena quantidade de drogas. O debate se alonga — Teori Zavascki pediu vista do processo, e seu substituto, Alexandre de Moraes, deve herdá-lo — e, nele, o ministro Luís Roberto Barroso já defendeu a descriminalização da maconha. Depois, em entrevista, avançou para pedir a legalização. Foram em linha semelhante a Barroso ministros Edson Fachin e Gilmar Mendes. Este defendeu a descriminalização do porte de qualquer droga. Até o veredicto final, votos podem ser alterados.

O momento é propício para se retomar o julgamento. Há sérios problemas em presídios, lotados em boa parte por criminosos relacionados ao tráfico. Mas a legislação é falha, porque não define, como em outros países, em função da quantidade de drogas apreendida, quem é traficante ou usuário. Fica ao livre arbítrio da polícia e do juiz.

 

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O cigarrinho de outrora

ANALICE GIGLIOTTI

16/04/2017

 

 

Em época de informações instantâneas, debates rasos e de um clamor pela legalização da maconha, segmentos da sociedade e os jovens em especial, curiosos por natureza, reúnem argumentos a favor da droga. Soma-se a isso a declaração do ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso de que a legalização da maconha, e depois de outras drogas, seria um caminho para atenuar a crise no sistema penitenciário pelo desmonte do tráfico. Precisamos, sim, discutir uma nova política de drogas, mas não sem atentar aos dados estatísticos.

Nos Estados Unidos, em 1993, o uso diário de maconha no colegial foi de 2,4%. À medida que políticas liberalizantes foram implementadas, a percepção de risco caiu, elevando o consumo diário para 6,5% em 2012. No Uruguai, ele saltou de 4 % em 2009 para 7% em 2014. A maconha, segundo a World Drug Report 2016, foi a droga mais consumida nos últimos anos.

Há hoje quase um consenso — equivocado — no Brasil de que a cannabis não faz mal. O cigarro também não era considerado pernicioso e, com o aumento da informação, viu-se como é destrutivo. Será que a maconha vai percorrer a mesma via crucis para, enfim, reconsiderarmos o ponto de vista? Os adolescentes são as maiores vítimas. Quanto mais precoce o contato com a droga, maior o risco de dependência (em até metade dos usuários), a chance de envolvimento com outras drogas, depressão, psicose, ataques de pânico, esquizofrenia e decréscimo de pontos no QI com prejuízo ao desempenho escolar — o que aumenta a probabilidade de ficarem desempregados e desmotivados na vida adulta.

E a ‘maconha medicinal’? Em estados americanos onde foi liberada, a taxa de abuso ou dependência da droga foi 1,9 vez maior. Em Washington, dobrou o número de acidentes de trânsito com condutores usuários.

O ministro aposta na legalização sob o olhar da segurança. Mas não há evidência sólida de que tal medida seja eficaz. Pelo contrário, a polícia uruguaia acaba de admitir que a legalização da droga não reduziu o tráfico. Além do mais, estamos em um país de dimensões continentais, onde a taxa de adesão a regras é baixa. Não se consegue nem controlar a venda de cigarros e bebidas alcoólicas a menores de 18 anos. Não há um sistema de saúde pública capaz de lidar com o impacto de mais usuários. Os poucos centros de tratamento ficarão abarrotados e funcionarão como portas giratórias.

Eu me tornaria, então, sócia dos vendedores legais de droga e ficaria com minha clínica lotada de pacientes que apelarão ao sistema privado. Devemos introduzir no debate a responsabilidade com a vida das pessoas.

 

Analice Gigliotti é psiquiatra especialista em dependência química e diretora da Espaço Clif

 

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O globo, n.30568 , 16/04/2017. Editorial, p. 18