Número de vítimas de tráfico humano sobe 8% em um ano

Luiza Souto

16/04/2017

 

 

Entidades protestam contra falta de políticas de combate aos crimes

 

De corpo franzino, os cabelos negros e lisos batendo na cintura, Carina, de 32 anos, não para de jogar os longos fios para a frente do corpo enquanto fala. “Eu prefiro eles curtos, mas uso assim para esconder essa cicatriz enorme, de quando tentaram me matar", justifica, mostrando uma marca feita a faca, que começa na orelha esquerda e vai até o pescoço. Carina, que aqui tem o verdadeiro nome trocado por questões de segurança, foi traficada para ser vítima de exploração sexual na Espanha, em 2004, e depois no Caribe, em 2010. A história dela se repete:

Levantamento do GLOBO nos 16 Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP), do Ministério da Justiça, aponta aumento de 8% de vítimas deste crime entre 2015 e 2016: pulou de 740 para 797 pessoas. Esses centros agem na prevenção ao crime e na assistência aos envolvidos.

Entre os grandes estados, o líder na origem das vítimas é Minas Gerais (de 112 para 432). Também houve altas em Paraná (de 4 para 57), Amazonas (de 1 para 9) e Ceará (de 4 para 5 vítimas), entre outros. Registraram queda São Paulo (de 249 para 96) e Goiás (de 310 para 116).

O tráfico de pessoas é o deslocamento das vítimas para fins como o trabalho em condições análogas à escravidão, exploração sexual, extração de órgãos, adoção ilegal e qualquer tipo de servidão. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) considera essa a terceira maior atividade criminosa do mundo e a de mais rápido crescimento entre as organizações criminosas transnacionais.

Um único caso pode envolver dezenas de vítimas. Ainda que a quantidade dos envolvidos tenha aumentado, houve, no entanto, uma queda de 10% (de 163 para 146) no número de casos recebidos por esses núcleos. Para os coordenadores desses locais, a falta de recursos, a escassez de mão de obra e ainda a pouca divulgação do crime inviabilizam número maior de denúncias.

No Rio, por exemplo, a assessora técnica do NETP-RJ, Sávia Cordeiro, diz que quase não há fiscais do trabalho para auxiliar no combate à escravidão.

— Em 2016, a Coordenadoria de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas sofreu com a redução de custos e funcionários. Isso impactou na relação com os núcleos, e houve falta de orientações e diretrizes para os Jogos Olímpicos, por exemplo — avalia Sávia.

Já as ONGS que atuam no resgate e atendimento às vítimas falam em falta de propostas eficazes. O secretário executivo do Projeto Resgate, Marco Aurélio de Sousa, diz que a atuação dos criminosos está se sofisticando ao mesmo tempo em que as campanhas contra o crime estão enfraquecendo. Os números da ONG entre 2015 e 2016 passaram

de 16 vítimas de tráfico resgatadas para dez.

— Todos os dias acordo com a sensação de que estou enxugando gelo. Trago dez meninas e voltam cem — diz Sousa.

Dalila Figueiredo, à frente da Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude (Asbrad), fala da necessidade de se dar continuidade às políticas de combate já existentes e também de se identificar e acolhimento das vítimas, para que se evite “a revitimização”.

O Itamaraty não comenta sobre as políticas de enfrentamento a este crime, mas diz que, pela natureza do fenômeno, é provável que esse número de vítimas “seja muito maior” porque, segundo o órgão, “elas raramente se veem como tal” e, de modo geral, “somente recorrem à ajuda do governo em casos extremos”. Em 2016, chegaram ao conhecimento das repartições consulares 12 casos envolvendo tráfico de pessoas na França, Espanha, Peru e Guiana Francesa. Se as denúncias não estão chegando aos núcleos, na internet pelo menos elas ganharam força neste mesmo período investigado. A SaferNet Brasil, que contabiliza denúncias de crimes praticados na rede, aponta aumento de 15% no volume de queixas contra o tráfico de pessoas: saiu de 1,3 mil para 1,5 mil, atribuídos a sites hospedados em 21 países. O presidente da ONG, Thiago Tavares, observa que 95% dessas denúncias referem-se a páginas que recrutam jovens para fins de exploração sexual.

— Esses números são baixos. O crime não é difundido. Reconhecem a exploração sexual ou trabalho escravo, mas o deslocamento que configura o tráfico acaba sendo subnotificado — atenta Tavares.

Natural de Piracicaba, interior de São Paulo, Carina teve infância pobre, com pai alcoólatra e mãe com problemas psiquiátricos. Desempregada, aceitou trabalhar como garçonete e dançarina numa boate em Guarulhos, em 2004, mas acabou caindo na prostituição. Convidada para trabalhar em Madrid, Espanha, foi levada para “um bordel de beira de estrada”. De volta ao Brasil em 2006 e sem apoio da família, voltou a trabalhar em boates, quando foi convidada para ser camareira no Caribe. Voltou a ser escravizada até 2012, quando voltou para o Brasil.

 
O globo, n.30568 , 16/04/2017. País, p. 10