Cássia Almeida
16/04/2017
Faria cem anos amanhã um dos maiores nomes do pensamento liberal que o Brasil conheceu. Roberto Campos, nascido em 17 de abril de 1917 e morto em 2001, era um defensor intransigente da livre iniciativa. Chamava a Petrobras de Petrossauro, condenando enfaticamente o monopólio da atividade, e combateu com veemência a reserva de mercado da informática, adotada em 1984 e que permaneceu até 1992.
“A Petrossauro foi criada em 1953. Um fato curioso é que, tanto na Argentina quanto no Brasil, os ideólogos principais do estatismo foram generais: lá, o general Mosconi; e aqui, o general Horta Barbosa. Partilharam, ambos, duas qualidades encontradiças nos militares latino-americanos — nacionalismo raivoso e incompetência treinada”, escreveu Campos no prefácio do livro de seu amigo Gilberto Paim.
O trecho é citado no livro que será lançado amanhã sobre os cem anos do economista, “O homem que pensou o Brasil”, organizado pelo diplomata Paulo Roberto de Almeida, com artigos de dez autores sobre a obra de Campos nas diversas áreas que atuou. Como diplomata, lembra Almeida, criticou “o terceiro mundismo” do Itamaraty e participou da conferência de Bretton Woods, nos EUA, em 1944, que criou o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial:
— Ele participou ativamente da primeira fase da construção do Estado brasileiro, um estadista. Era um liberal, mas recomendou muita coisa estatizante, como o BNDE e a companhia de petróleo, nos anos 1950.
Edmar Bacha, economista crítico da política econômica do regime militar, do qual Campos fez parte no governo de Castelo Branco, usou a fábula “O rei de Belíndia” para ilustrar a extrema desigualdade brasileira, acirrada pelo arrocho salarial contra a inflação de 92% ao ano em 1964.
— Voltei dos meus estudos nos EUA em 1968. O objetivo básico era acabar com a ditadura e a política econômica do regime militar e seus representantes, entre eles, Campos. A repressão aos sindicalistas data daquele período. Toda a capacidade de organização da sociedade foi restringida totalmente a partir de 1964.
Campos foi o responsável, juntamente com Octávio Gouvêa de Bulhões, pelo Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg), que organizou o Estado nos primeiros anos da ditadura militar, criando as condições para o crescimento milagroso de 11% anual, em média, de 1967 a 1973, quando o choque do petróleo abateu a expansão de dois dígitos.
Simplificou impostos, ampliou a base de tributação do Imposto de Renda e criou o fundo de participação de estados e municípios. Na área financeira, implantou a correção monetária, o Banco Central, o Banco Nacional de Habitação (BNH), o mercado de capitais, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), a abertura ao capital externo. A política salarial embutida no plano foi responsável pelo arrocho que reduziu a parcela dos 50% mais pobres na economia de 17,7% para 14,9% entre 1965 e 1967.
UM CRAQUE DA ORATÓRIA
Paulo Rabello de Castro, presidente do IBGE que se considera “o discípulo mais querido de Campos”, diz que falar apenas do plano é reduzir a participação do economista, diplomata, professor, administrador e político na vida pública brasileira:
— Dedicou a vida a pensar soluções para a pobreza no país. O apóstolo maior do enriquecimento dos pobres no Brasil, sem a mentira dos fanáticos nem o absolutismo dos sonhadores. Era muito mais que um simples sujeito que defendia a economia de mercado. Era um filósofo social.
Castro também lança livro sobre Campos amanhã, “Lanterna na proa”, organizando textos juntamente com Ives Gandra. O título é referência à obra de Campos “Lanterna na popa”, que vendeu mais de 100 mil cópias.
Campos dominava a oratória. Frasista, fabricava imagens que descreviam a realidade brasileira que teima em se repetir, como na posse na Academia Brasileira de Letras (ABL) em 1999: “Hoje, 122 anos depois, continuamos despreparados para as secas e ainda se fala na indústria da seca, pois há enorme vazamento de recursos em benefício de intermediários, burocratas e políticos”.
Pregador do Estado mínimo, Campos defendeu subsídios.
— Era presidente do BNDES, em 1995, e a bancada federal do Rio veio ao meu escritório para reclamar da política do fundo de marinha mercante, que estava matando a indústria naval. E o Campos estava lá, de cabeça baixa, lendo um livro, também pedindo subsídio para indústria ineficiente. Ele queria se fingir de morto, mas não deixei, fiquei olhando para ele o tempo todo — relembra Edmar Bacha.
O escritor Eduardo Giannetti considera Campos mais um pregador do que um intelectual:
— Ele teve importância enorme como homem público, mas nunca foi um desbravador no campo da economia. Era sabido de antemão como textos e palestras iam terminar. Era um jogo de cartas marcadas. Muito a postura do pregador.
Giannetti critica a opção de Campos de se mirar nas nações do Norte, principalmente nos EUA, o que lhe rendeu o apelido de ‘Bob Fields’:
— Tenho profunda divergência da ideia. Como se fôssemos cópias defeituosas do mundo desenvolvido. Não queremos ser como eles, ainda bem que não somos.
Bacha, apesar das divergências, considera Campos o símbolo do pensamento liberal.
— Rui Barbosa foi o grande liberal do início do século XX; Eugênio Gudin, entre 1930 e 1950; e entre 1960 e 1990, foi Campos.
José Júlio Senna, ex-diretor do BC, lembra de uma dedicatória:
— Ele escreveu: “espero que a sua geração consiga fazer pelo Brasil o que a minha não conseguiu”. Tenho medo de ter falhado.
O globo, n.30568 , 16/04/2017. Economia, p. 30