Valor econômico, v. 17, n. 4232, 10/04/2017. Opnião, p. A13

A estreia da DLT

 

David Kupfer

 

Em sua cruzada reformista, o governo cometeu um grave erro ao sancionar em 31 de março a Lei nº 13.429/2017, conhecida como Lei da Terceirização, resultante da aprovação de maneira açodada pela Câmara dos Deputados, dias antes, de um projeto de lei que lá se encontrava em estado de hibernação desde 1998. A justificativa dada para a sanção de uma lei que propugna a terceirização sem limites, inclusive na administração pública, foi a de que a reforma trabalhista, ora em discussão, irá regular esses limites. É o início da DLT - Desconstrução das Leis do Trabalho?

Os defensores da nova lei alegam que a CLT é muito antiga, de um tempo em que prevaleciam formas verticalizadas e integradas de produção. Só que o modelo implícito ao arcabouço da nova lei é de 25 anos atrás. Pode ter havido postulantes que o consideravam funcional para possibilitar a reengenharia e o downsizing requeridos para a introdução do paradigma da produção enxuta dos anos 1990. No entanto, as formas organizacionais mudaram muito desde então de modo que, mesmo que pudesse estar ajustado à realidade da época (o que tampouco estava, pois não restringia a terceirização espúria, aquela motivada somente por objetivos de elisão dos custos trabalhistas), esse modelo hoje está também superado.

Agora prevalecem os requisitos do paradigma digital, conectado e inteligente contemporâneo, que se apoia na busca de eficiência proporcionada pela complementariedade e não mais pela especialização. Conclusão: está-se trocando uma regra considerada caduca por outra idem.

Que o marco legal da terceirização vigente era ruim todos sabiam. Resumia-se a uma súmula do Tribunal Superior do Trabalho que estabeleceu um princípio, ancorado no objeto da terceirização, segundo o qual era permitido a contratação de empresas prestadores de serviços em atividades-meio, mas não em atividades-fim. De fato, diferenciar atividades meio e fim em relações de contratação que buscam eficiência via complementariedade não faz mesmo qualquer sentido. Por isso, há os que defendem a nova lei porque viram nela uma solução simples e definitiva para abolir o quadro de insegurança jurídica causado por regramento tão frouxo.

Embora segurança jurídica seja indispensável, essa é uma questão processual somente, muito distante de abarcar a essência do problema que, evidentemente, está no campo do direito do trabalho. É trivial afirmar que a interposição de uma lei em lugar de uma súmula elimine insegurança jurídica. Mas até esse raciocínio precisa ser observado de forma criteriosa, pois vale somente para o que está sendo legislado. A nova lei vai certamente reduzir o número de demandas judiciais em torno do objeto (atividade-meio ou fim). Mas ninguém em sã consciência, nem mesmo seus defensores, arrisca-se a afiançar que não dará margem ao surgimento de novas inseguranças jurídicas, ligadas a quebra de direitos consagrados na lei trabalhista maior.

(...)

O que elimina insegurança jurídica é uma boa lei. E nem é preciso ser advogado para saber que um diploma legal é bom quando legisla com clareza sobre objetos, atores e ações, qualidade essa que não passa nem perto da lei 13.429/2017. Não que autorize, mas a nova lei se omite em relação a esquemas de quarterização, "pejotização", precarização dos terceirizados. Essa é uma lacuna preocupante dada a profusão e confusão de regras trabalhistas e fiscais existentes no Brasil e a consequente barafunda de formas empresariais que convivem no país - empresas em regimes de lucro real, presumido, Simples, MEI (Microempreendedores Individuais), cooperativas diversas, dentre outras. Sem um regramento claro, é imprevisível o que irá acontecer.

A lei tampouco exclui a possibilidade de contratação de empresas de intermediação de mão de obra. A ausência de menção explícita a essa proibição que, aliás, consta da variante em análise no Senado Federal, poderá implicar a rápida proliferação dessas empresas. Deixar toda essa tarefa a cargo da CLT e da Constituição Federal não parece uma opção muito efetiva.

Não se nota na nova lei preocupação com os efeitos da contratação. A lei optou por casar contratantes e contratados em formas brandas de união, pautadas em conceitos de responsabilidade subsidiária. A norma contemporânea, ratificada pela experiência internacional, mostra que quanto maior o espaço regulatório para a terceirização, mais solidário tem que ser o modelo de atribuição de responsabilidades: contratadas tecnicamente proficientes e juridicamente comprometidas; contratantes proativas na fiscalização desses requisitos. A omissão da lei nesses pontos, longe de ser semântica, revela a opção por abrir mão de assertividade na garantia do trabalho decente em todos os elos da cadeia de contratação.

Esse é o eixo central das diretrizes orientadoras das normas voluntárias de responsabilidade social corporativa e é até estranho que a lei brasileira não as incorpore ou sequer com elas dialogue.

Em suma, a terceirização à brasileira vai causar estragos. A questão, como se vê, não está na cortina de fumaça da especificação do objeto terceirizado. O problema está em não fazer do contratante e do contratado co-responsáveis pela construção e manutenção de um padrão sadio de relacionamento capital-trabalho. Rotatividade, superexploração da mão de obra, desincentivo ao aprendizado pelo trabalhador, subinvestimento em qualificação da mão de obra, desproteção social e tantas outras mazelas que há décadas cobram um preço altíssimo na conta da produtividade nacional permanecem intocadas. Pior, certamente irão aumentar no ambiente regulatório mais permeável à precarização trazida pela lei da terceirização recém sancionada. Ao não atacar o cerne do problema, a lei parece mais um tapete para debaixo do qual se pretende varrê-lo.