O jogo jogado da corrupção

Franscisco Leali

23/04/2017

 

 

Marco zero das delações, currículos de executivos já indicavam poder de fogo da Odebrecht. Para Emílio, patriarca do grupo, as duas partes, agentes públicos e privados, aceitaram as regras

 

 

Currículos de trabalho. Os prosaicos relatos da carreira profissional são o marco zero da delação premiada dos executivos da Odebrecht que arrastou políticos dos maiores partidos do país para o mundo do crime. Ali, empreiteiros relatam como engenheiros civis se tornaram especialistas em pagar propina e distribuir recursos de caixa 2. Os textos encabeçam o material entregue ao Ministério Público Federal e antecederam a gravação de vídeos.

Uns mais desenvoltos, outros menos, contam uma trajetória comum na companhia: formados em engenharia, alguns ainda na qualidade de estagiários, entraram no grupo empresarial e foram subindo na hierarquia até chegar ao topo da firma e mandar distribuir dinheiro a deputados, senadores, prefeitos, governadores, presidentes.

“Sou engenheiro civil formado em 1968”, inaugurou a lista o patriarca do grupo, Emílio Alves Odebrecht, em novembro do ano passado, sem indicação do dia. Em tom professoral, contou como substituiu o pai Norberto e foi sucedido pelo filho Marcelo no comando da firma. Principal responsável pelo maior processo de delação de uma empresa de que se tem notícia, falou das mazelas do presidencialismo de coalizão, que obriga o chefe de Executivo a atender favores e distribuir cargos mesmo que seja para quem não tem competência para o ofício. E acaba admitindo os pagamentos em caixa 2. “Essa interação entre o poder público e os agentes privados só foi possível porque as duas partes aceitaram jogar o mesmo jogo”, disse.

 

ESTÍMULO PELA REMUNERAÇÃO

O filho foi mais formal: “Eu, Marcelo Bahia Odebrecht, nasci em 18 de outubro de 1968, em Salvador, Bahia, tenho atualmente 47 anos. Sou casado e tenho três filhas. Sou engenheiro civil”. E passa a desfiar sobre cargos que ocupou e cidades onde morou até chegar ao comando da companhia aos 33 anos.

No dia 2 de dezembro do ano passado, o então preso Marcelo postou-se pela primeira vez à frente de uma câmera do MPF para fazer o que, num passado não muito distante, declarou publicamente não recomendar às filhas: apontou o dedo em direção a políticos dos mais variados partidos e confessou ter presidido a empresa que leva o sobrenome da família, distribuindo pagamentos de caixa 2 e propina pelo país e também no exterior.

“Eu, Carlos Souza, ingressei na Odebrecht em 1992, tendo atuado em diversas empresas do grupo. Em 2006, assumi o cargo de vicepresidente de finanças e relações com investidores da Braskem”, disse o ex-diretor que se apresentou ao MPF afirmando ter ajudado a reunir as informações necessárias ao processo de delação da empresa.

No dia 15 de dezembro, seguindo o movimento da direção da empresa, Renato de Medeiros se apresentou aos procuradores em Sergipe. Declarou-se um técnico, sempre um técnico. Até assumir interinamente a diretoria regional da Odebrecht no Rio de Janeiro. No posto, recebeu a ordem do superior Fernando Reis para identificar lideranças políticas que poderiam ser bancadas pela empresa.

— Sou engenheiro civil, formado em 1984. Sempre trabalhei na área técnica. Quando assumi interinamente a diretoria regional no Rio de Janeiro, tive conhecimento de pagamentos de caixa 2 — admitiu, com ar constrangido, o diretor Renato Medeiros, já no vídeo.

Já Hilberto Mascarenhas, o principal operador da propina no grupo, não se constrangeu ao se apresentar como o pagador interessado nos benefícios de seu ofício. “Fui funcionário da Odebrecht por 40 anos, tendo atuado na área administrativo-financeira em diversos projetos no Brasil e no exterior”. Em 2006, foi convidado por Marcelo Odebrecht para assumir o setor da corrupção. “Em princípio, relutei para aceitar o cargo tendo em vista a grande exposição e risco que o trabalho me traria, mas depois de alguma insistência por parte dele, aceitei a proposta, principalmente pela remuneração e pelos benefícios que passaria a ter”, confessou.

O globo, n. 30575 , 23/04/2017. País, p. 4