Foro mais perto do fim

Maria Lima e Catarina Alencastro

27/04/2017

 

 

Senado aprova em 1º turno proposta que acaba com privilégio para 35 mil autoridades

-BRASÍLIA- Por 75 votos a zero o Senado se antecipou ao Supremo Tribunal Federal (STF) e aprovou ontem, em rito sumário, o primeiro turno da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que acaba com o foro privilegiado para cerca de 35 mil autoridades no país. O projeto de autoria do senador Álvaro Dias (PV-PR), que dormia nas gavetas do Senado desde 2013, foi colocado subitamente na pauta da Comissão de Constituição e Justiça e, por decisão do presidente da Casa, Eunício Oliveira (PMDB-CE), acabou tendo sua primeira votação em plenário ontem mesmo.

A pressa em torno do projeto que até pouco tempo desagradava os parlamentares, que perdem o privilégio de responder a processos no STF, deve-se a uma pressão externa. Após a divulgação das delações de executivos da Odebrecht envolvendo mais de uma centena de autoridades, a presidente do STF, Cármen Lúcia, marcou para maio a votação de uma proposta do ministro Luís Roberto Barroso que acabaria com o foro privilegiado para crimes comuns de políticos em diversos casos. Os senadores decidiram então se antecipar e acabar com o foro para todas as demais autoridades também.

RISCO DE EMENDAS QUE DESFIGURAM PROJETO

Hoje, não apenas parlamentares, mas também ministros, juízes, governadores, prefeitos, procuradores, promotores e outras autoridades têm direito de serem julgados em instâncias privilegiadas. Pelo relatório aprovado ontem, só será mantido o foro para os presidentes da República, da Câmara, do Senado e do Supremo.

No substitutivo, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) rejeitou todas as emendas que propunham a criação de uma vara especial para julgar parlamentares, governadores ou ministros. Também rejeitou a emenda que vinculava a aceitação da abertura de processos para parlamentares, mira nistros e outras autoridades ao crivo do STF.

— Acho que o que mais pesou para a votação da PEC hoje foi o Supremo Tribunal Federal anunciar que irá decidir sobre quem manterá foro. Isso foi uma espada de Dâmocles (referência da mitologia grega a personagem que foi servido em banquete como rei com uma espada pendurada sobre sua cabeça, com apenas um fio de rabo de cavalo) — disse Randolfe.

O coordenador da Lava-Jato, procurador Deltan Dallagnol, comemorou:

— Esse passo na direção do fim do foro é uma feliz notícia.

A avaliação reservada entre os líderes da Casa é que, ao votar o relatório do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) com uma tramitação relâmpago, sem nenhum orador na última sessão, surpreendendo até mesmo o relator, o Senado fez uma “revanche” ao Ministério Público e à magistratura, acabando com o foro para todos, já que foram obrigados a desidratar o projeto de abuso de autoridades para atendê-los.

Na presidência da Mesa, o senador Eunício Oliveira (PMDB-CE), ao final da aprovação do fim do foro, logo após a aprovação do projeto de abuso de autoridade, disse que o dia de ontem marcaria a história do Senado.

— O dia de hoje marca um grande avanço institucional. Com a aprovação do projeto de abuso de autoridade acabamos com uma excrescência, o fim da carteirada, das prisões injustas, dos maus tratos nas delegacias e com os vazamentos. E a aprovação desses dois projetos não foi a toque de caixa, foram exaustivamente discutidos. Presidir essa sessão história foi uma honra para mim — discursou Eunício.

O relator, Randolfe Rodrigues, e autor da PEC, Álvaro Dias, comemoraram a aprovação.

— Foi um pequeno passo para esse país se tornar uma República. Agora temos que conseguir derrubar as emendas que desfiguram a PEC e aprovar o segundo turno no Senado antes de ir paa Câmara. Vamos nos armar para a segunda batalha — disse Randolfe.

Por se tratar de uma proposta de emenda constitucional, o texto precisará passar por nova votação no Senado e por mais duas na Câmara antes de ser promulgada. O segundo turno da PEC do fim do foro acontecerá após a realização de três sessões de discussão no plenário, com possibilidade de apresentação de emendas.

POR ORA, CÂMARA NÃO TEM PRESSA PARA VOTAÇÃO

Apesar de ter sido aprovada por unanimidade, gerando desconfiança sobre os 75 a zero cravados, alguns senadores da oposição criticaram duramente a PEC que acabaram de votar pela aprovação.

— Havia aqui no Senado o sentimento de que o STF ia acabar o foro para ministros e parlamentares, aí decidiram acabar para todo mundo. Mas você já imaginou se isso vingar? Um juiz de primeira instância vai poder prender ministro e governador. Parlamentar não, porque o Congresso tem que autorizar, mas ministro pode. Tem juiz aí prendendo em fase de instrução de inquérito — comentou um senador da oposição logo após a votação.

Líderes na Câmara disseram ao GLOBO que em tese são favoráveis ao fim do foro privilegiado, mas que a prioridade na Câmara é a aprovação das reformas. Lembram que a proposta precisa passar pela Comissão de Constituição de Justiça e depois por uma comissão especial, antes de ir a plenário. Na comissão especial, a pressa vai depender de um acerto político. O líder do DEM na Câmara, deputado Efraim Filho (PB), disse que será o relator da PEC na CCJ, porque já relator de outras PECs sobre o tema na comissão.

— Serei o relator da questão do foro na CCJ. Mas depois há uma tramitação em comissão especial, que pode levar 180 dias. Temos que analisar. Mas a Câmara não pode pecar por inércia ou omissão — disse Efraim Filho.(Colaborou Cristiane Jungblut)

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O que o fim do foro pode mudar no país?

27/04/2017

 

 

MICHAEL MOHALLEM - CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR DA FGV DIREITO RIO

Se pensar em um jogo de xadrez, o STF moveu algumas peças importantes nas últimas semanas. Houve sinalização da presidente Cármen Lúcia de colocar na pauta a tese do ministro Luís Roberto Barroso de reduzir o foro para apenas crimes cometidos na legislatura atual. Segundo cálculos da FGV Direito Rio, se essa tese emplaca, reduziria para 5% dos casos atuais no STF. Boa parte dos senadores que aprovaram o texto na CCJ já estariam sem foro. Tem outro movimento: o ministro Luiz Fux falou numa palestra que já havia maioria na Corte para aprovar a tese do Barroso. São duas sinalizações fortes de que um caminho que começou a se materializar. E os senadores não ficariam nem com o protagonismo (de acabar com o foro). Além disso, há uma pressão enorme para que ministros tenham reforço de juízes auxiliares. A perspectiva que começa a ser desenhada é a de um julgamento mais rápido no STF, em instância única. Então, fica mais vantajoso para quem quer postergar se o caso for a julgamento em três instâncias. É um custo muito alto trocar o fim do foro pelo abuso de autoridade? Pode ser, mas o fim do foro privilegiado já estava encaminhado.

 

GUSTAVO BINENBOJM - PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ

Acho que um eventual trade off (sobre a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional para o fim do foro privilegiado logo depois do projeto de lei que endurece penas para o crime de abuso de autoridade), com a perda de um lado para ganhar de outro, tem muito mais ganhos em termos de isonomia, por exemplo. Uma das chagas da formação social e política do Brasil é a impunidade, irmã gêmea dos privilégios. (O fim do foro) é uma boa notícia para quem é contra a impunidade. O foro era um privilégio de origem monárquica, e sua raiz histórica era proteger os donos do poder. A História demonstra a dificuldade em punir agentes públicos, especialmente os políticos. O foro para quem quer procrastinar é o Supremo Tribunal Federal, que tem uma falta de funcionalidade operacional para lidar com processos múltiplos (como a Lava-Jato). E é sempre possível que eventuais erros da primeira instância sejam corrigidos na segunda — para condenar ou absolver. Recentemente, o próprio Supremo soltou réus da Lava-Jato por considerar que estavam presos há muito tempo.

 

GUILHERME PEÑA DE MORAES - PROMOTOR DE JUSTIÇA DO RIO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL DA UFF

Pelo que se diz, o fator que impede o combate à corrupção é o foro especial, mas não há prova de que o foro tenha impacto na demora de um julgamento ou que fomente algum tipo de abuso. Sou contra a visão que coloca o foro especial como causa para isso. Ele existe em várias democracias contemporâneas. É comum em Repúblicas. É importante citar que o privilégio do foro não é dado à pessoa, mas à função. Em sua origem, nasceu com essa determinação, e por isso não é incompatível à República. O foro especial, em algumas situações, é uma forma de proteção daquele que o detém, forma de protegê-lo de eventual pressão. Imagina um juiz de Direito no interior do país que tem o foro e não teria mais? O foro é uma forma de proteção à função, e a função é uma forma de proteção à democracia. Portanto, tudo passa por como abordar a questão pontual. Uma coisa é foro especial para político, outra é para agente público. Tratar de forma genérica não é devido. A democracia precisa se proteger. Agora o texto foi aprovado no Senado e ainda vai para a Câmara. É preciso ver a redação final.

 

O globo, n. 30579, 27/04/2017. País, p. 3