Valor econômico, v. 17, n. 4233, 11/04/2017. Especial, p. A12

Leniência é pré-requisito para licitação e empréstimo

 

Torquato Jardim
Murillo Camarotto

 

Os acordos de leniência com o Ministério da Transparência (antiga Controladoria-Geral da União) servirão de pré-requisito para que empresas acusadas de corrupção voltem a participar de licitações ou a tomar empréstimos com instituições financeiras públicas. Quem avisa é o advogado Torquato Lorena Jardim, que desde junho de 2016 está à frente da CGU. Segundo o ministro, a demora na celebração dos primeiros acordos é explicada pelas falhas na Lei Anticorrupção, que ele considera "ruim".

Especialista em Direito Eleitoral, Jardim chegou ao cargo após a demissão de Fabiano Silveira, pego em conversas telefônicas fazendo críticas à Lava-Jato e orientando o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) a atuar nos processos em que é investigado. Com 58 anos, o ministro da Transparência também é professor da Universidade de Brasília e ocupou uma cadeira no Tribunal Superior Eleitoral entre 1988 e 1996.

Na sua avaliação, a fragilidade da legislação resultou em "caos constitucional", no qual vários órgãos públicos disputam a celebração dos acordos de leniência ou a declaração de inidoneidade das empresas investigadas. Apesar disso, Jardim garante que acertou os ponteiros com o Ministério Público Federal (MPF) e com o Tribunal de Contas da União (TCU) e que os acordos três gigantes da construção começaram a avançar.

Ainda assim, o destino dos acordos de Odebrecht, Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa vai depender do desfecho do "recall" acertado recentemente pelas empresas com o MPF e o TCU. Declaradas inidôneas pelo tribunal, as empreiteiras comprometeram-se a atualizar os acordos assinados com o Ministério Público e incluírem os valores apontados pelo TCU na fraude à licitação da usina nuclear de Angra 3. Em troca, Odebrecht, Camargo e Andrade livram-se da inidoneidade.

O presidente Michel Temer está preocupado com a retomada da economia e cobra do ministro um desfecho para a questão das principais empreiteiras do país. "Como disse o presidente inúmeras vezes, a dignidade da pessoa humana começa por ter emprego. Deixei sempre muito claro que não se trata de anistia ou perdão; é trazer as empresas de volta ao mercado pelo mecanismo legal", afirmou o ministro.

Ele participa hoje de uma reunião do grupo de trabalho do G-20 para combate à corrupção. O Brasil assumiu recentemente a copresidência do núcleo e quer avançar na cooperação internacional na área administrativa. O país já avançou bastante na cooperação jurídica, mas a troca de informações e documentos entre os governos ainda é incipiente. Um dos problemas é a dificuldade em evitar os vazamentos.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

 

Valor: Tanto as empresas investigadas pela Lava-Jato quanto os órgãos públicos vêm falando da necessidade de um acordo de leniência com a CGU para que sejam autorizadas a participação em licitações e reabertura do crédito nas instituições financeiras públicas. Esse acordo é, afinal, um pré-requisito?

Torquato Jardim: É um pré-requisito legal e de fato. Porque o BNDES, como qualquer banco ou estatal, se vai conceder crédito ou fazer contrato, precisa fazer um check-up de quem vai tomar o crédito. E se a empresa candidata está respondendo a um processo do qual pode resultar uma declaração de inidoneidade, qual a postura de cautela? "Empresa, você não passou no check-up. Acerte a sua vida e venha com atestado de bons antecedentes". Acho minimamente prudente que nenhuma agência de empréstimo ou fomento pública, da União, Estados ou municípios, conceda empréstimo a uma empresa que está respondendo processo, seja no Ministério Público ou na Transparência.

 

Valor: A CGU trabalha há mais de dois anos nesses acordos. Por que eles não saem?

Jardim: Nós temos quatro agências constitucionais com competência para isso: TCU, MPF, AGU e Ministério da Transparência. A Lei Anticorrupção cometeu um equívoco, ela é ruim. Conferiu a competência para os acordos de leniência exclusivamente ao Ministério da Transparência, quando você tem, decorrentes da própria Constituição, a competência dos outros três. Você tem ângulos penais a serem estudados pelo MPF, você tem ações de improbidade ou de reparação que são da AGU e você tem aquela competência constitucional vastíssima do TCU. Então você tem que combinar essas quatro missões constitucionais. A lei não criou um mecanismo de convivência. O Poder Executivo cometeu outro equívoco em dezembro de 2015, quando deu uma canelada no TCU e no MPF.

 

"O Executivo cometeu equívoco em dezembro de 2015, quando deu uma canelada no TCU e no MPF"

 

Valor: Por conta daquela medida provisória que desobrigava a CGU a compartilhar informações?

Jardim: A medida provisória caducou, mas quando eu cheguei ao ministério, em 2 de junho do ano passado, herdei esse caos constitucional. No confronto do Ministério da Transparência com o TCU obteve-se até uma liminar do Supremo para sustar o trabalho do TCU. Aquilo era uma declaração de guerra! Eu me fiz diplomata, sentei com todos e está composto um mecanismo de consulta. Com a AGU nós temos uma portaria interministerial, então eles participam de tudo desde o começo. Agora, com o MPF é mais complicado, porque no poder Executivo você tem os ministros, mas no MPF cada procurador é o Ministério Público. Eles têm uma leitura muita vasta - talvez necessária - da competência de cada um.

 

Valor: No caso da SBM Offshore, por exemplo, a CGU fez o acordo, mas o MPF barrou.

Jardim: Já saiu um acordo, o da SBM Offshore, mas que ainda carece de aprovação do Ministério Público Federal. No acordo consta uma cláusula que diz: "a vigência se dá a partir da aprovação pelo Ministério Público". O procurador da República, na primeira instância, fez um belíssimo trabalho, mas a 5ª Câmara de revisão entendeu que faltava investigar mais alguma coisa. Houve recurso em outra instância, que confirmou essa decisão. Então, o processo vai voltar à primeira instância para expandir a investigação em um espaço que tem interesse para as funções de MPF. Não afeta o cerne da negociação administrativa que se pôs no acordo de leniência, mas essa é minha interpretação.

 

Valor: E com o TCU?

Jardim: Temos um acordo de fato com o TCU. Todas e quantas equipes de investigação o TCU quiser vão trabalhar com o Ministério da Transparência. Eles têm uma chave de acesso ao sistema de sigilo e examinam todos e quaisquer documentos. A dificuldade operacional é que o TCU não fala por uma pessoa só: são nove ministros. Cada processo é distribuído para um ministro, um estafe. Consequentemente, você tem um processo muito mais lento do que seria de outra forma. O mecanismo de operação deles leva a uma lentidão.

 

Valor: Há também os pedidos do Ministério Público para que as negociações fossem congeladas.

Jardim: Além dessas circunstâncias, outros acordos não foram feitos porque o próprio MPF em Curitiba, o time da Lava-Jato, nos pediu por escrito que não prosseguíssemos em certas investigações para não duplicar os esforços e evitar conflitos de documentos. Então nós estamos aguardando a decisão deles.

 

Valor: O MPF pediu para aguardar, mas já assinou com três grandes empresas da Lava-Jato: Odebrecht, Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa. Por que nem mesmo esses acordos foram destravados pelo Ministério da Transparência?

Jardim: Esses três estão avançando, é o que posso dizer para não quebrar o sigilo.

 

"Não se trata de anistia ou perdão, é trazer as empresas de volta ao mercado pelo mecanismo legal"

 

Valor: O TCU declarou recentemente a inidoneidade de algumas empresas. Para essas, um eventual acordo com o Ministério da Transparência não ficou completamente sem sentido?

Jardim: Essa é uma bela questão constitucional e legal e está sendo cuidadosamente estudada. A declaração de inidoneidade aplicada pelo TCU tem a ver com fraude à licitação. A do Ministério da Transparência tem a ver com outros fundamentos, como violação da lei de abuso de poder e à lei das estatais, entre outras. Além disso, a punição é muito mais vasta. Proíbe contrato com poder público: União, Estados e municípios. A princípio, então, não há conflito porque a declaração de inidoneidade do Ministério da Transparência pode ter fundamento legal diverso e efeitos mais largos.

 

Valor: Após toda aquela celeuma, o TCU acabou se entendendo com o MPF, gesto que foi visto como uma forma de isolar o Ministério da Transparência. Como o senhor avaliou essa medida do tribunal?

Jardim: Pelo que ficou acertado entre eles, as três empresas têm 60 dias para acertarem o passo com o MPF e só então poderemos saber as consequências para nós. Vamos aguardar o fato concreto.

 

Valor: As empresas que celebraram acordo com o MPF têm dito que têm interesse em assinar também com a CGU, mas que não podem se comprometer com novos desembolsos. Ainda há muito a ser cobrado?

Jardim: Alguma vez na vida você ouviu um empresário dizer que tem dinheiro disponível para pagar mais alguma coisa?

 

Valor: Há algum tipo de pressão do Ministério Público Federal para que os acordos firmados por eles prevaleçam sobre os demais?

Jardim: O Ministério da Transparência não é pressionável.

 

Valor: O presidente Temer já se manifestou sobre a demora na celebração dos acordos de leniência?

Jardim: O presidente deixou claro, quando me fez o convite, sobre o esforço para a recuperação econômica dessas empresas para gerar empregos. Como disse o presidente inúmeras vezes, a dignidade da pessoa humana começa por ter emprego. Deixei sempre muito claro que não se trata de anistia ou perdão, é trazer as empresas de volta ao mercado pelo mecanismo legal. Os equipamentos dessas empresas foram comprados com benefícios fiscais. Grande parte dos engenheiros e técnicos que trabalham nessas empresas, hoje desempregados, foram formados em escolas públicas. Então também é retorno de investimento.

 

Valor: O Brasil acabou de assumir a copresidência do núcleo do G-20 voltado ao combate à corrupção. Como estamos em termos de cooperação internacional no âmbito governamental?

Jardim: Essa é uma opção que o Brasil fez há muito tempo, no documento da Declaração de São Petersburgo, em novembro de 2015, que o Ministério da Transparência e a AGU redigiram e à qual depois aderiu o Ministério Público Federal já indicava esse interesse da cooperação entre os Executivos dos países envolvidos. A investigação tem que ter, no mínimo, a mesma velocidade com que se passa o crime organizado. O Brasil já tem uma tradição na área criminal, como os tratados bilaterais e o sistema de cartas rogatórias. Essa cooperação administrativa é necessária pela necessidade de velocidade nas investigações.