Título: Para eles, acabou
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Fonte: Correio Braziliense, 16/12/2011, Mundo, p. 18

Estados Unidos desativam o quartel-general em Bagdá, recolhem bandeiras e encerram oficialmente quase nove anos de guerra. Conflito sectário, Exército fraco e influência do Irã assombram o futuro

Mais de 100 mil mortos — incluindo 4,5 mil soldados dos EUA —, US$ 750 bilhões gastos e um país que precisará caminhar e se reerguer com as próprias pernas. Quando a bandeira branca da força EUA-Iraque foi retirada de uma área fortificada no aeroporto de Bagdá, o presidente Barack Obama colocava ponto final na guerra iniciada por seu antecessor, George W. Bush, há oito anos, oito meses e 26 dias. Era exatamente 13h15 (8h15 em Brasília) e a cerimônia simbolizava a entrega de um novo Iraque soberano ao governo do premiê Nuri Al-Maliki e ao povo, além do fechamento do quartel-general do Pentágono no país.

Durante o evento, parte dos 5,5 mil soldados americanos restantes começavam os preparativos para a viagem de volta. Entre 3 mil e 4 mil permanecerão no Kuweit. O fim da ocupação lança uma dúvida sobre o futuro e sobre a capacidade do Iraque de superar os desafios de uma nação destruída e sob constante ameaça de um conflito sectário.

"O Iraque será testado nos próximos dias pelo terrorismo e por aqueles que buscam dividi-lo; pelos temas econômicos e sociais; pelas demandas da democracia", declarou Leon E. Panetta, secretário de Defesa dos EUA, que representou o presidente Barack Obama no evento. "Após muito sangue derramado por iraquianos e por americanos, a missão de um Iraque seguro e capaz de se governar tornou-se real", garantiu. Panetta admite que o custo foi alto — tanto em vidas quanto em dinheiro. "Aquelas vidas não serão em vão. Elas deram origem a um Iraque independente, livre e soberano", acrescentou.

"A próxima vez que eu vir aqui, terá que ser como convidado do governo iraquiano", brincou o general Martin Dempsey, chefe do Estado-Maior Conjunto dos EUA, citado pela rede de tevê CNN. A secretária de Estado, Hillary Clinton, prometeu ajudar o povo iraquiano "a atingir suas próprias ambições de um Iraque livre e soberano".

Por telefone, o iraquiano Louay Bahry, ex-professor de ciência política da Universidade de Bagdá, afirmou ao Correio não ter dúvidas de que seu país é melhor hoje do que uma década atrás, quando estava sob jugo do ditador Saddam Hussein. "Muitas pessoas morreram, mas Saddam também assassinou sunitas, xiitas, curdos e forçou um êxodo de refugiados. Pelo menos, agora há esperança", disse. De acordo com ele, o futuro do Iraque envolve uma série de medos. Bahry explica que o Exército iraquiano é bastante fraco e denuncia o desaparecimento de armas, mísseis e aviões das Forças Armadas. "Outro problema é que o Irã está gastando muito dinheiro para armar milícias, corromper políticos e fortalecer as milícias do clérigo xiita Muqtada Al-Sadr", comenta. O especialista alerta sobre a alta possibilidade de um confronto sectário. "Não sabemos o que vai acontecer. Também existe o perigo da separação completa da área curda do restante da nação", diz Bahry. E aponta o petróleo, uma das fontes de energia principais do Iraque, como problema. "Os campos de petróleo iraquianos estão obsoletos e escassos e precisam ser recuperados", conclui.

Irã O fator Irã foi lembrado por Obama, ainda que de modo velado, ao receber Al-Maliki em Washington, na segunda-feira. O mandatário alertou que não aceitará interferências externas no Iraque. O embaixador iraniano Mohsen Shaterzadeh Yazi ironizou o alerta da Casa Branca. "Os Estados Unidos têm que aceitar a realidade. Eles não saíram do Iraque, mas foram expulsos. Foi um fracasso para eles", alfinetou, em entrevista ao Correio. Segundo ele, os EUA levaram apenas "guerra, destruição e crimes ao território iraquiano".

Mustafa Kadhim, um engenheiro de 28 anos que vive em Najaf — cidade sagrada xiita —, vê dificuldades para seu povo. "A partir de agora, o Exército iraquiano é o responsável pela proteção das fronteiras e do espaço aéreo, e nossos vizinhos têm boas forças armadas e riquezas", lembra. "Nós estamos muito felizes com a retirada da América, mas ao mesmo tempo preocupados com o futuro incerto." Bahry concorda com Panetta e adverte que Al-Maliki tem pela frente "um grande teste", além de precisar lidar com a falta de coesão de seu governo. "A administração iraquiana está dividida entre facções, grupos representativos e o próprio gabinete do premiê. Além de o governo ser fraco e não entender a noção do "moderno", a Constituição iraquiana é desprovida de salvaguardas que garantam a sobrevivência do regime", explica.

Um dia histórico

"15 de dezembro de 2011 é o melhor dia para o Iraque, desde a queda de Saddam Hussein, em abril de 2003. Obtivemos a soberania plena. Todos os iraquianos, em todas as cidades, celebram e estão contentes. Não podemos fazer uma grande festa porque ainda observamos o Muharram, o mês que lembra o assassinato do imã Hussein ibn Ali, o neto do profeta Maomé. Estamos tristes pelo imã Hussein, mas felizes porque o Exército americano saiu."

Sob a ameaça da corrupção "Sou um observador da situação política no Iraque. Considero o fim da ocupação uma vitória da resistência. No entanto, não sou otimista, em termos do futuro político de meu país. A maioria dos líderes iraquianos não representa o povo e apenas tenta roubar o Iraque. Acredito que veremos incidentes envolvendo sunitas e xiitas, mas não um confronto direto. O governo iraquiano precisará ser mais cauteloso em relação a aspectos da segurança."