Flexibilização por decreto 
Renata Mariz 
08/05/2017
 
 
Sem passar pelo Congresso, governo edita normas que enfraquecem controle de armas

-BRASÍLIA- Portarias e decretos editados sem alarde pelo governo Michel Temer vêm modificando as regras de controle de armas no Brasil. As mudanças atendem total ou parcialmente ao que propõe o projeto patrocinado pela bancada da bala, na Câmara, que extingue o Estatuto do Desarmamento. Entre as alterações, está o aumento da validade da posse de arma de fogo para civis. Outras novas regras estão sendo estudadas pelo ministérios da Justiça e da Defesa.

Na base da canetada, o governo começou a editar as mudanças mais significativas no fim de dezembro do ano passado. Em um decreto, ampliou de três para cinco anos o registro de arma de fogo, que dá direito à posse. Ou seja, manter o armamento em casa ou no trabalho, caso seja o dono ou o responsável legal pelo estabelecimento comercial ou empresa.

O mesmo decreto tirou do rol de documentos necessários para todas as renovações do registro o atestado de capacidade técnica. Antes exigido a cada três anos, o documento que prova habilidade para manusear a arma terá que ser apresentado, agora, de dez em dez anos — ou a cada duas revalidações. Continuam obrigatórios o teste psicológico e a certidão de antecedentes criminais em todas as renovações, no novo prazo de cinco anos.

ATESTADO PSICOLÓGICO COM MAIOR VALIDADE

Militares da reserva e profissionais aposentados com direito a porte de arma também foram beneficiados com a ampliação do prazo de validade do atestado psicológico, de três para cinco anos, que tem de ser apresentado. As novas regras baixadas pelo presidente Temer com a anuência do Ministério da Justiça, que regula o acesso de civis a armas, dividem a opinião de especialistas em controle de armamento no país e sua relação com a violência.

Para Felippe Angeli, coordenador de advocacia do Instituto Sou da Paz, a ampliação da validade do registro de arma de fogo de três para cinco anos é razoável, diante dos custos e da burocracia para obtenção do certificado. Ele critica, porém, a regra que aumentou para dez anos o prazo de renovação do atestado de capacidade técnica.

— Dez anos é um tempo mais do que suficiente para que uma inaptidão física possa aparecer e colocar em risco o próprio dono da arma e quem está em torno dele — diz Angeli, que é advogado e mestre em ciências sociais.

Já Bene Barbosa, presidente do Movimento Viva Brasil, que defende o fim do Estatuto do Desarmamento, afirma que as mudanças representam a flexibilização necessária, mas não suficiente, para garantir o direito das pessoas de ter armas. Ele diz que os prazos deveriam ser ainda mais dilatados, e o procedimento para se ter porte ou posse, desburocratizado.

— As mudanças recentes são um indicativo de que a política do desarmamento adotada nos últimos anos pelo governo federal, desde FH até Dilma Rousseff, precisa ser mudado porque não deu resultados no combate à violência — afirma Barbosa.

Ele reconhece ter havido uma redução dos homicídios após a edição do Estatuto do Desarmamento, no fim de 2003, mas não atribui o fenômeno à legislação. Para Barbosa, experiências pontuais de redução de assassinatos, principalmente no estado de São Paulo, explicam a queda na média nacional, que saiu de 24,5 para 19 mortes por arma de fogo a cada cem mil habitantes entre 2004 e 2007. A taxa voltou a subir a partir de 2009, retornando, em 2014, ao patamar anterior ao Estatuto, último ano com dados disponíveis.

Autor do Mapa da Violência, que traça as causas de homicídios no Brasil há quase três décadas, o sociólogo Julio Jacobo defende o Estatuto como um dos responsáveis pela redução inicial e posterior estabilização dos homicídios no país, principalmente por conta das campanhas de entrega voluntária de armas, depois abandonadas pelo governo. O aumento das mortes nos últimos anos, segundo ele, ocorre pelo relaxamento no controle de armas e ausência de políticas estruturais contra a criminalidade violenta, com foco em investigação e inteligência.

— Essas mudanças recentes, olhadas de forma isolada, parecem pequenas, mas consideradas em conjunto poderão tornar o Estatuto do Desarmamento praticamente inócuo — critica Jacobo.

MUDANÇA PREVÊ USO DE ARMAS APREENDIDAS

Outra alteração, estabelecida por decreto e regulamentada por portaria publicada na última terça-feira, é a destinação de fuzis, metralhadoras, carabinas e espingardas apreendidos a órgãos de segurança e Forças Armadas. Até então, o material era destruído. Agora, se o Exército e o Ministério da Justiça autorizarem, poderá ser doado para órgãos estatais, desde que em boas condições de uso e dentro da quantidade pertas, mitida para cada instituição.

O governo estuda outras alterações nas regras sobre armas no Brasil. No Ministério da Defesa, um novo texto sobre regulação de produtos controlados vem sendo debatido. Uma das principais alterações é a permissão para órgãos de segurança e Forças Armadas importarem armas. Hoje, as instituições só podem comprar fora se não houver similar no mercado interno, o que é criticado como um requisito subjetivo.

No Ministério da Justiça, uma pauta apresentada por deputados da bancada da bala ao ministro Osmar Serraglio foi encaminhada para a área técnica. A principal reivindicação é que a Polícia Federal dê autorização para acesso à arma caso o requerente apresente todos os documentos exigidos, retirando a avaliação feita hoje sobre a necessidade alegada pelo cidadão. Aumentar de três para cinco anos a validade do porte e permitir que guardas municipais tenham acesso a armamentos de uso restrito são outras medidas em estudo pelo governo.

Serraglio, ministro da Justiça, disse ao GLOBO que não tem opinião formada sobre as proposmas que é preciso estudá-las para buscar um equilíbrio entre a lei atual, mais restritiva, e o referendo de 2005, pelo qual a população se posicionou favorável ao comércio de armas. Questionado sobre qual lado deve ser atendido pelas mudanças, Serraglio tergiversa:

— Nem tanto ao mar, nem tanto à Terra. Tem que ter alguma coisa que não rasgue uma decisão popular, mas que também interprete até onde ela se manifestou. É preciso avaliar que tipo de arma qual cidadão está pedindo. Se ele mora no interior do Mato Grosso é muito diferente de um que mora em Brasília. Temos que avaliar.

 

O globo, n. 30590, 08/05/2017. País, p. 3