Abuso de autoridade 

02/05/2017

 

 

Nossa Opinição - Real objetivo

Em todo o debate, que prossegue, sobre o projeto de lei aprovado no Senado sobre “abuso de autoridade", o menos importante é o abuso de autoridade. Ninguém discute que se trata de um assunto relevante em qualquer democracia conter o poder do agente público, ainda mais numa sociedade de longa tradição de esmagamento da sociedade pelo Estado e seus representantes. Mas o que está em questão nesta proposta de lei é a Lava-Jato, o real motivo da tramitação da proposta.

Importante é não deixar de registrar para os arquivos da História que não é por acaso que quem assina este projeto é o senador Renan Calheiros (PMDB-AL), um dos principais políticos atingidos pela Lava-Jato e réu em pelo menos um processo no Supremo, embora este sem relação com a maior devassa anticorrupção em curso no mundo. Citado nas delações da Odebrecht, porém, Renan ainda poderá ser incluído no rol de réus devido à operação.

Também não é coincidência que o relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça do Senado tenha sido o também peemedebista Roberto Requião (PR), aliado do PT, defensor de Dilma no processo de impeachment, e da tropa de apoio a Lula. Por sinal, Renan, à medida que os ventos passaram a soprar contra ele no plano jurídico, foi-se afastando do governo Temer, enquanto acenava para Lula. Como forma de melhorar os maus prognósticos eleitorais dele e do filho, governador de Alagoas, estado em que o lulopetismo ainda conta.

Estavam claras a inoportunidade e a inadequação de um investigado pela Lava-Jato, autor de críticas públicas a procuradores e juízes, e presidente do Senado — cargo que desocupou em janeiro —, envolver-se em um projeto de lei que, na versão original, era evidente e inconstitucional obstáculo à Justiça, ao Ministério Público e a outros organismos do Estado em ações contra a corrupção patrocinada por políticos de alta graduação. Seria a negação da República, em que todos têm de ser iguais perante a lei. Com o projeto de Renan/Requião, não seriam.

A intenção de criar o crime de hermenêutico, o dolo na interpretação da lei por juízes, procuradores, e, por extensão, os demais agentes públicos, é algo que remete a ditaduras que se disfarçam de “democracias”.

Tentar esta manobra quando, só das delações da Odebrecht resultaram mais de 70 inquéritos para investigar políticos com mandato, inclusive Renan, foi, no mínimo, uma inconveniência. E ainda virão as delações de outras empreiteiras.

No Senado, evitou-se a aprovação do atropelamento da independência do juiz e do procurador, passíveis de denúncia criminal se contrariassem réus e suspeitos. Emendas aceitas por Requião, depois de intensa negociação, mascararam o objetivo dos políticos da Lava-Jato. Um deles, inviabilizar o instrumento da delação premiada. A força-tarefa de Curitiba continua em campo, e o projeto irá para a Câmara. As escaramuças continuarão.

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Paulo Teixeira  - Evitar arbítrios

O Estado Democrático de Direito surgiu após os horrores da 2ª Guerra com objetivo de impor limites rígidos ao exercício de qualquer poder. Nas democracias, a atividade dos agentes estatais está condicionada pela incidência do princípio da legalidade estrita, que existe para preservar os direitos, as garantias fundamentais e evitar arbítrios. O abuso de autoridade é uma das mais significativas violações ao Estado Democrático de Direito. Não se pode aceitar que o mesmo agente estatal que pune quem viola a lei penal possa violar a legalidade. Violências ilegítimas promovidas pelo Estado são muito graves: há, nesses casos, um desvalor objetivo que autoriza a tipificação penal em razão dos riscos criados à democracia.

No Brasil, a legislação que tratou do “abuso de autoridade” nunca se mostrou efetiva na construção de uma cultura democrática e de respeito à legalidade. Mas, se o desejo da sociedade for o de construir uma sociedade democrática, impõe-se reforçar, no campo simbólico formado pelas leis, a desaprovação do direito em relação às condutas de agentes públicos que violam os direitos fundamentais, em maior número, daqueles que não interessam aos detentores do poder político e do poder econômico. Nenhuma forma de corrupção pode ser naturalizada, muito menos a corrupção do sistema de direitos e garantias fundamentais por agentes do Estado.

O parlamento brasileiro deve debater a necessidade e adequação de um novo regramento que busque dissuadir a prática de abusos por autoridades. A solução penal é uma das hipóteses postas à discussão. É possível questionar a efetividade e buscar formas de racionalizar o direito penal, mas soa, no mínimo, paradoxal que alguns agentes públicos, muitos juízes e membros do MP, critiquem um novo regramento que procura reforçar o desvalor dos casos de abuso de autoridade. É fácil perceber que os principais críticos da nova tipificação penal são os mesmos que insistem na efetividade da pena e confiam nas suas capacidades de identificar um criminoso. Uma violação da legalidade por um juiz é tão grave quanto a ilegalidade praticada por um cidadão que não exerce a jurisdição.

Há, por evidente, o risco de a nova lei de abuso de legalidade ser aplicada de forma distorcida e permitir abusos e controles indevidos das funções estatais. Mas esse risco existe na aplicação de qualquer lei, inclusive nas tipificações penais que criminalizam condutas mais comuns nas camadas pobres da população. Hoje, sem a necessidade de uma lei nova, muitos juízes e promotores, às vezes por ousarem cumprir a Constituição, já sofrem controles ideológicos. Se uma lei produzida em atenção à técnica legislativa, uma lei que reduz os espaços de arbítrio, é mal aplicada (e, por vezes, dolosamente distorcida), o problema é antes da qualidade técnica e ética dos intérpretes. Ninguém pretende uma lei que puna a interpretação, mas, da mesma forma, a democracia não suporta mais abusos acobertados pelo poder.

 

O globo, n. 30584, 02/05/2017. Artigos, p. 14