Valor econômico, v. 17 , n. 4236, 17/04/2017. Política, p. A6

PT tinha 'conta corrente' na Odebrecht

 

A Odebrecht criou um sistema parecido com o de um banco, com "conta corrente" e limites em dinheiro, para tratar dos pagamentos a campanhas e políticos do PT. O esquema centralizado contava com "titulares" das contas, que seriam os ex-ministros Antonio Palocci ("Italiano") e Guido Mantega ("Pós-Itália"). O controle dessas planilhas era feito diretamente por Marcelo Odebrecht, que afirmou ter pago R$ 300 milhões entre 2008 e 2015. O esquema difere dos demais mantidos pela empreiteira por não ser feito de uma única vez nem estar ligado a contrapartidas específicas.

Os recursos foram usados para "fins diversos", que incluíram desde o financiamento de campanhas eleitorais até o apoio a revistas, de acordo com o depoimento do ex-executivo da Odebrecht ao Ministério Público. Uma "subconta" específica, chamada "Amigo" e operada por Palocci, foi criada posteriormente para uso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

 

 

A conta "Italiano" foi aberta com saldo de R$ 114 milhões, logo após o governo atender a dois pedidos da Odebrecht: o chamado "Refis da Crise", programa de renegociação de dívidas tributárias após a crise financeira de 2008, e o aumento de uma linha de crédito de R$ 1 bilhão do BNDES para negócios da companhia em Angola. O empresário diz que os valores foram incrementados perto das eleições de 2010.

Fora os pedidos do Refis da Crise e do financiamento em Angola, os "saques" das contas não eram relacionados a demandas específicas. Mas delatores da Odebrecht relatam uma série de benefícios obtidos pela companhia desde o início do governo Lula, em 2003.

O sistema centralizado de arrecadação de recursos era uma característica específica do PT, segundo Marcelo Odebrecht. Quanto outro candidato do partido procurava a empreiteira e não havia nenhum interesse específico na contribuição, os recursos só eram liberados com a autorização de Palocci. Foi o caso da contribuição feita para a campanha de Tião Viana ao governo do Acre, segundo o empresário.

A subconta "Amigo" na Odebrecht surgiu após a primeira vitória de Dilma, em 2010, a partir de um pedido de Palocci para as demandas que Lula teria após deixar a presidência. Mas o empresário se recusou a colocar dinheiro novo. "Eu via sempre como uma conta com o governo federal e com o PT, não era uma conta do Lula."

Em outro típico jargão bancário, o empresário disse que a solução para abastecer a conta Amigo foi "provisionar" R$ 35 milhões que estavam no saldo Italiano. A ideia inicial era que os recursos saíssem rapidamente da conta, a partir de uma doação do grupo para a criação do Instituto Lula.

"O problema é que eles sempre se mostraram complicados em oficializar o que recebiam, então não queriam aparecer que tinham recebido", afirmou. Sem a doação, os pedidos de dinheiro da conta Amigo acabaram saindo "picadinhos", em geral feitos pelo assessor de Palocci Branislav Kontic (Brani), segundo Marcelo.

O empresário disse que nunca tratou sobre as contas com Lula, mas procurou informá-lo por meio do pai, Emílio Odebrecht, sobre o valor das doações feitas pela empreiteira à campanha de 2010 de Dilma. Marcelo também afirmou que não tinha como saber o destino dado aos recursos sacados da conta Amigo, mas relatou que a doação feita pela Odebrecht em 2014 para o Instituto Lula, no valor de R$ 4 milhões, foi abatida desse saldo.

Os recursos da conta Amigo deveriam ser os únicos pagamentos da Odebrecht ao ex-presidente, mas isso acabou não funcionando na prática. "Por alguma razão, meu pai e o Alexandrino [Alencar], quando atendiam pedidos do Lula, não avisavam que era para descontar da planilha Amigo [...] então a gente pagava, entre aspas, duas vezes", disse. Entre os pagamentos que não saíram da conta estão a reforma do sítio de Atibaia (SP) e as palestras feitas pelo ex-presidente, ainda de acordo com o empresário.

O saldo remanescente da conta Italiano, já descontada a "provisão" para Lula, era da ordem de R$ 50 milhões e ficou a cargo de Guido Mantega, segundo o depoimento da delação. O ex-ministro passou a movimentar efetivamente o dinheiro a partir de 2011, depois que Palocci deixou o governo Dilma.

Como Mantega ocupava o Ministério da Fazenda e era também o interlocutor do governo com os empresários, Marcelo Odebrecht teve uma agenda ainda mais intensa com ele do que com Palocci. "Deve ter sido umas 50 ou 60 reuniões ao longo do tempo", afirmou. Os pedidos de dinheiro ocorriam durante esses encontros, que aconteciam geralmente na sede do Banco do Brasil em São Paulo, onde o Ministério da Fazenda ocupa um andar, segundo o executivo.

A conta "Pós-Itália", de movimentação exclusiva de Mantega, surgiu dois anos depois, quando o dinheiro do saldo Italiano estava perto de acabar. Embora o dinheiro movimentado não tivesse relação com alguma demanda atendida, a Odebrecht procurava abastecer as contas petistas com recursos das empresas que se beneficiaram de decisões favoráveis do governo.

No caso da conta Pós-Itália, foram R$ 100 milhões da Braskem e pouco mais de R$ 20 milhões da Odebrecht Realizações Imobiliárias (OR). "Nem era do meu interesse dizer como eu alocava internamente. Na verdade, eu queria que ele [Mantega] atendesse todas as nossas agendas", afirmou o empresário.

Ainda segundo Marcelo Odebrecht, os recursos da empresa destinados à campanha de reeleição de Dilma saíram da conta Pós-Itália. Isso inclui tanto as doações oficiais feitas pela empreiteira, como o pagamento de caixa 2 feito ao marqueteiro João Santana e os repasses feitos por terceiros, como a cervejaria Itaipava. "Eu não consigo diferenciar a ilicitude da origem por ter sido caixa 1 ou caixa 2", disse.

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Sobe o tom da crítica de petistas históricos ao partido

 

A megadelação da Odebrecht aprofundou a divisão que já existia no Partido dos Trabalhadores (PT) desde o primeiro ano do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, diante de sua agenda liberal e da aliança que o ex-presidente fez com o meio empresarial para garantir sua eleição e a governabilidade. Naquele momento, muitos petistas históricos se afastaram do partido. Agora, a avalanche de suspeitas sobre a figura de seu líder máximo reforça a cisão e a sensação de desencanto entre fundadores e apoiadores da legenda. Para alguns, o PT tem que ser refundado. Para outros, vive seus últimos dias de agonia.

Um dos críticos mais contundentes é o sociólogo mineiro Paulo Delgado, membro da primeira Executiva Nacional do PT, que se elegeu seis vezes deputado federal, mas que se desfiliou no início da crise do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. "A relação de Lula com Emílio Odebrecht é de bajulador", alfineta. "A corrupção do Brasil é uma corrupção de bajuladores."

Delgado censura tanto a atuação do PT como a de Lula. "O PT, na fundação, era a mais moderna esquerda. Mas não teve perícia para ser governo e se manter íntegro no Estado." Lula, avalia, "passou a governar demais e trouxe para a esfera do Estado todo tipo de interesses. E aí entrou a corrupção também".

O erro da legenda, segue Delgado, que hoje preside o conselho de economia, sociologia e política da Fecomércio, foi ter promovido a "hiperestatização". O PT hoje está "entre dois precipícios: o Estado gigante de um lado e a sociedade que olha desconfiada para o partido, do outro".

O ex-petista não poupa farpas para o ex-presidente Lula. "Ele demanda uma atenção exagerada para si, um comportamento típico de líderes tradicionais da esquerda, como Stálin e Mao Tsé-Tung. Líderes que fracassaram", continua. "Lula é lulista, não é petista. Mas o PT é maior que Lula."

O remédio, no seu entendimento, está em duas frentes. O ex-presidente Lula deveria parar de fazer campanha e se calar. "Lula deve ao Brasil um período de silêncio, para que a sociedade possa refletir sobre o que aconteceu. Falar é querer que a sociedade brasileira se refugie no conforto da polarização política." O PT, por seu turno, deveria afastar todos os dirigentes envolvidos.

Outro quadro histórico do PT, Tarso Genro, ex-governador do Rio Grande do Sul e três vezes ministro de Lula, também tem suas críticas, mas reflete de outra forma sobre a dinâmica do partido diante da crise política sem precedentes, que atinge todas as legendas. "Sinceramente, espero que aproveitemos a oportunidade para nos renovar, mas não sei se isso será possível, na situação de instabilidade política que o país está vivendo no pós-golpe", respondeu por e-mail.

Genro administra seu desalento de outra forma. "Sou suficientemente maduro para saber que boa parte das denúncias que são feitas têm apenas a finalidade política de desgastar um partido e um projeto, que se caracterizou por fazer mudanças em defesa dos direitos dos pobres e dos trabalhadores", diz.

Analisa os erros do PT com abordagem ampla, do sistema político brasileiro. "Sei que erros e ilegalidades cometidos pelo PT são praticamente naturais em todos os grandes partidos do país e não são incomuns em nenhuma das instituições do Estado brasileiro. Devem ser combatidos por todos os meios legais, para melhorar a moralidade republicana da nação."

Genro defende a tese da refundação do PT desde 2005, quando estourou o escândalo do mensalão. Ali dizia que a legenda puniria cada um dos envolvidos em denúncias de corrupção e caixa 2 para financiamento de campanhas. Agora, quando a crise sobe para outro patamar, e a rubrica "vantagens indevidas" dá outra musculatura à investigação, Genro contextualiza a refundação do PT a uma crise da esquerda.

"A 'refundação' de um partido de esquerda, de caráter democrático, baseado nas ideias do socialismo democrático, é uma exigência da falência das experiências, tanto do socialismo real, como da social-democracia. E ela não tem relação com o moralismo de ocasião adotado pela direita liberal e neoliberal", diz o político gaúcho.

Genro é mais pragmático ao responder se acredita que o ex-presidente Lula tem condições de ser candidato em 2018. "Se Lula não puder ser candidato, as eleições presidenciais de 2018 carecerão de legitimidade."

O ex-deputado federal Vladimir Palmeira, outro petista histórico mas que deixou a legenda há mais de cinco anos, diz que "vantagens indevidas" fazem parte do perfil da política brasileira. "Mas sempre achei que Lula, Dilma e Fernando Henrique estavam acima disso. É uma situação constrangedora. Mas está claro que os Odebrecht querem prejudicar Lula", defende.

Palmeira saiu da legenda que ajudou a fundar quando o sindicalista Delúbio Soares, tesoureiro do PT, preso e condenado por corrupção, foi reabsorvido pelo partido em 2011, depois de ter sido expulso. "Ali a punição foi branda", lamenta. "Achei um absurdo o cara ser expulso por corrupção e depois voltar cinco anos depois."

Agora, contudo, o espanto de Palmeira é maior. "Não se imaginava que na Petrobras tivesse uma coisa daquele nível. A Lava-Jato tem este mérito, mostrou uma corrupção sistemática no sistema político brasileiro, que envolveu a todos", registra, para constatar, em seguida, que o PT não faz autocrítica. "Nada, zero, nenhuma reflexão. Ali Lula é inocente, Dilma, também. O PT devia apoiar a Lava-Jato e defender que se investigue a fundo. Ver que é algo positivo para curar suas chagas."

Na visão do militante histórico da esquerda, é inevitável que o PT emagreça. Sobre a crise que a megadelação abriu na conjuntura política brasileira, Palmeira confessa preocupação. "Não vejo nenhuma saída. Não é um mau governo só, é uma crise onde ninguém manda, uma crise de hegemonia. Não tem proposta, não tem nada. Temer [o presidente Michel Temer] é ilegítimo, e de certo ponto de vista, Dilma também foi, ao defender um programa e executar o do adversário. Mas tirar Dilma e colocar Temer é uma piada. O tribunal devia cassar logo e convocar eleição", defende. "Deveriam encontrar uma maneira, ter bom senso, e chamar uma eleição direta", diz Palmeira, hoje filiado ao PSB e professor de economia nas Faculdades Integradas Hélio Alonso.

"Quando comecei a ver as denúncias de que algumas pessoas no PT tinham cometido atos ilícitos, sempre respondi, a quem me perguntasse se eu continuava no PT, que continuo por atenção aos mais de 1,5 milhão de filiados. E que se alguns cometem erros gravíssimos, constitui meu dever prevenir e corrigi-los", diz Eduardo Suplicy, outro quadro histórico do PT, três vezes senador e atual vereador que bateu recorde de votação na capital paulista em 2016. "O PT está fazendo sim uma reflexão, vendo o quão grave foi o procedimento de pessoas que agiram de maneira a prejudicar o bom nome do Partido dos Trabalhadores. E é importantíssimo que se assegure o direito pleno de defesa previsto na Constituição a quem vem sendo objeto de denúncia da Lava-Jato."