Valor econômico, v. 17, n. 4236, 17/04/2017. Política, p. A15

Odebrecht montou caixa ilegal de US$ 3,4 bi

 

As companhias do grupo Odebrecht, inclusive a Braskem, desviaram de seus próprios negócios US$ 3,37 bilhões, entre os anos de 2006 e 2014, para dar conta dos pagamentos ilegais. O valor é a soma dos depósitos feitos a partir do departamento de operações estruturadas nesse período. Marcelo Odebrecht calcula que de 0,5% a 2% do faturamento do grupo foi retido em caixa dois, nos últimos 30 anos.

Esse é um dinheiro que os sócios do grupo nunca viram a cor, mas compartilharam os eventuais benefícios comprados. O ex-presidente e herdeiro do grupo deixa claro, em seus diversos depoimentos ao Ministério Público Federal (MPF), que todo pagamento ilegal saía do departamento de operações estruturadas e era feito com dinheiro deixado pelas empresas em contas fora do país.

"A geração do caixa dois era de conhecimento amplo dentro da organização. As pessoas sabiam, mas viam pelo lado da evasão fiscal", disse Marcelo a procuradores. "Eu cresci nesse ambiente de caixa dois. Quer dizer, sabia que era indevido de alguma maneira. Mas a gente não via grande ilicitude nisso."

Entre 2005 e 2007, com o aumento do entra e sai de dinheiro, a estrutura ficou mais sofisticada, e um profissional foi designado para orquestrar a geração do caixa dois, encontrar as oportunidades para isso dentro das empresas e estruturar as transações.

Marcos Grillo, delator de menor expressão do maior caso de corrupção do mundo, foi a mente por trás da engenharia que tirava o dinheiro dos negócios e abastecia o departamento de operações estruturadas, a partir do qual o diretor Hilberto Mascarenhas fazia os pagamentos ilícitos.

Até o início da década de 90, o caixa dois era gerado com uso de empresas de terceiros (laranjas) que emitiam "notas frias", segundo explicou o herdeiro. Mas, após o escândalo dos Anões do Orçamento, a companhia decidiu mudar e priorizar estruturas internacionais, de forma e reduzir a dependência de terceiros, como doleiros e laranjas, e tentar controlar a informação dentro do grupo.

Antes de virar pagamento a políticos, o dinheiro escoava por uma extensa lista de offshores, nas mais diversas transações financeiras, para tentar fazer sumir qualquer digital da Odebrecht.

A construtora era a maior geradora de caixa dois e também a maior usuária dos recursos. Segundo Marcelo, boa parte do volume era feito em Angola e Venezuela, locais onde a margem era mais alta e os controles, menores.

O empresário preferia que as concessionárias dos serviços de infraestrutura deixassem o pagamento dos ilícitos para a construtora, pois eram negócios quase sempre feitos em sociedade. Porém nem sempre isso foi possível e também as concessionárias desviaram dinheiro, conforme relataram Benedicto Barbosa Jr., diretor da Odebrecht Infraestrutura, e Henrique Valadares, da área de energia do grupo.

Grillo, em seu depoimento, explicou que toda obra com dragagem era uma "oportunidade interessante" para desvio de recursos fora do Brasil. "Gerar caixa dois com dragagem é tradicional."

Ele ilustrou sua explicação com um caso concreto, de um contrato para o Prosub, o projeto de construção de um submarino nuclear para a Marinha brasileira. A Odebrecht contratou a companhia belga Jan del Nul para dragagem do porto.

No lugar de um pedido único à subsidiária brasileira da companhia belga, a Odebrecht fechou dois acordos: um com a filial nacional, pelos serviços, e outro internacional, pelo aluguel das dragas, direto com a dona dos equipamentos, em Luxemburgo.

Para pagar a Jan del Nul internacional, a Odebrecht honrou uma nota fiscal de R$ 418 milhões remetidos para fora do Brasil. Desta nota, recebeu a devolução de R$ 98 milhões, por meio de diversas transações no mercado internacional com fundos e offshores. Segundo Grillo, o saldo foram US$ 39 milhões e € 10 milhões. A negociação dos valores, disse, envolvia representantes da Jan del Nul.

De acordo com a explicação do executivo, o valor total da nota da Jan del Nul incluía, como é de praxe, todo custo de operação da draga, como combustível, peças de reposição, transporte, entre outros. Mas a Odebrecht fornecia diretamente tais insumos. No lugar de a empresa belga abater esse valor do custo e emitir uma nota menor, ela devolvia fora do país a diferença.

Além da construtora, a Braskem também originava parte importante do saldo para o departamento de Mascarenhas. Carlos Fadigas, ex-presidente da petroquímica, explicou em seus depoimentos que "a geração de caixa dois consistia no pagamento de comissões fictícias de exportação e importação, através das empresas Planner, Hatched e Worldwide".

Segundo ele, na Braskem, esse sistema "rodava no automático" e rendia US$ 27 milhões ao ano. O desvio foi encerrado em 2014, por conta da Operação Lava-Jato.

Marcelo contou que sabia da contribuição pela petroquímica. "Eu sabia que havia uma geração [na Braskem], em dimensão muito menor do que na construtora, mas sabia que tinha" afirmou ele.

Embora preferencialmente o dinheiro deveria ser gerado fora do Brasil e não nas concessionárias, Henrique Valadares, responsável pela Odebrecht Energia, relatou que houve caixa dois na dragagem do Rio Madeira, em Rondônia, para construção da usina de Santo Antônio - projeto em sociedade com a Andrade Gutierrez. "Era proibido gerar caixa dois nas obras no Brasil. Mas Marcelo e Hilberto chamaram todos os líderes empresariais numa reunião e mandaram todos fazer o máximo possível, pois não estavam sendo capazes de atender a demanda."

Barbosa Jr disse que, entre as exceções de contratos aqui no Brasil, está um com a DAG. Segundo ele, a devolução de dinheiro foi tratada por ele, diretamente com o dono da empresa, Demerval Gusmão. "Ele tinha contrato de locação de equipamentos conosco. Nós majoramos o contrato com valor adicional e ele nos devolveu esse dinheiro para o sistema, para o Setor de Operações Estruturadas."

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Departamento da propina estruturou-se em 2006

 

Na enxurrada de informações gerada pelos inquéritos e pelas delações da Odebrecht na semana passada, pouco se falou das origens da corrupção. Pelo menos desde os anos 1980, a empresa sempre contou com uma área de operações estruturadas, denominação dada ao departamento que processava e distribuía pagamentos de propina e caixa dois. Até 2006, porém, o setor operava de forma mais amadora, menos sofisticada, confiando apenas no trabalho de poucos doleiros e na utilização de notas fiscais frias.

Nesse período, o baiano Antonio Ferreira da Silva Neto, funcionário de carreira da área financeira da Odebrecht, respondia pelos pedidos de pagamentos irregulares da alta cúpula da empresa. Seu nome pouco aparece nas investigações. Ele se aposentou depois que foi substituído em 2006. Hoje sofre de Alzheimer.

Hilberto Mascarenhas Alves da Silva Filho, 62 anos, substituiu Silva Neto 11 anos atrás, "intimado" por Marcelo Odebrecht a dar escala e minimizar riscos à área da propina. "Solicitaram que eu assumisse, arrumasse e deixasse a coisa preparada para o crescimento em volume em função do crescimento da empresa. Em princípio neguei, mas Marcelo [Odebrecht] me disse que era um convite irrecusável. Então eu disse a ele que não era convite, era intimação. Ele chegou a me perguntar a diferença. Intimar custaria mais caro, respondi. Ele me disse que isso era questão de acertos meu e dele", diz Mascarenhas em delação premiada à Procuradoria Geral da República (PGR).

Formado em administração de empresas, Mascarenhas começou na Odebrecht como estagiário em 1975. Seu primeiro chefe imediato foi justamente Silva Neto, na área financeira da Fundações de Engenharia Ltda. (Fengel), em Salvador. Além disso, sempre se relacionou com a família Odebrecht - seu pai foi presidente do Banco do Estado da Bahia e amigo íntimo de Norberto e Emílio Odebrecht, figuras tratadas por "doutor" nas oitivas. Passou por várias empresas do grupo, no Brasil e no exterior, sempre no departamento financeiro. Conhecia como ninguém cada linha do balanço do conglomerado.

Com essa habilidade e total confiança de Marcelo Odebrecht, Mascarenhas criou uma tesouraria paralela à oficial da empresa para processar e pagar propinas e caixa dois no Brasil todo e em vários países. A tesouraria da propina, inclusive, era baseada no mesmo sistema de informática da contabilidade oficial, o MyWebDay "B". Tudo era vinculado ao setor específico da empresa ou obra que fazia o requerimento do pagamento irregular. Mascarenhas implementou ainda a mesma taxa de custo de operação que a Odebrecht contabiliza em seus livros oficiais. Se um entregador de propina precisasse alugar um carro ou de hospedagem para efetuar o pagamento, os valores seriam abatidos da contabilidade da área que originou a solicitação do dinheiro ilícito.

Nas delações, Mascarenhas explicou os procedimentos mais de uma vez aos procuradores. "Veja bem, tudo na Odebrecht é pago. Para o custeio geral da empresa existe uma coisa chamada taxa de administração. No caso da área de Operações Estruturadas nós definimos cobrar 22% de tudo que era solicitado. Se a pessoa pedisse para gastar R$ 10 mil [para a propina a um político ou fiscal de obra], seria debitado da conta do setor ou da obra dele R$ 12,2 mil. Os 22% eram o custo que a empresa gastava para fazer o caixa dois e o custo de trabalho da [nossa] área. Ficou claro agora?", explicou o delator.

Nas quase cinco horas de delação, toda vez que respondia sobre o funcionamento do departamento das propinas da Odebrecht, Mascarenhas busca associar Marcelo Odebrecht a tudo que aconteceu sob sua supervisão. Ao mesmo tempo, ele se desvincula da ponta final da cadeia criminosa, os destinatários finais do dinheiro sujo.

O Departamento de Operações Estruturadas executava todo o esquema contábil e financeiramente. Os recursos eram gerados pelas empresas estrangeiras do grupo e movimentados por mais de 40 offshores e até um banco em paraísos fiscais. As propinas no exterior eram pagas via transferência bancária. No Brasil, tudo era feito em real, "só em dinheiro vivo". Os dólares eram internalizados via remessas e comprava-se reais usando dezenas de doleiros, que coordenavam a rede de entrega.

De 2006 a 2008, confessa Mascarenhas, Marcelo comandou pessoalmente o esquema, sendo o único a autorizar pagamentos irregulares, ajudado por seu "cão de guarda" Isaías Ubiraci Chaves Santos. A partir de 2009, quando Marcelo assumiu a presidência da holding de empresas da Odebrecht, a liberação de propinas foi descentralizada para seis líderes empresariais do grupo, os LEs. "Foi quando Marcelo me 'fodeu-deu-deu'. Eu disse a ele: 'Você me tirou de um chefe para seis'", lembra Mascarenhas, que encerrou as atividades do departamento da propina em 2015, pouco antes de ser preso em março de 2016. Hoje vive em prisão domiciliar por razões médicas; usa tornozeleira eletrônica.

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Software da empresa era suscetível a duplicidades

 

Apresentado à maioria dos executivos da Odebrecht somente após a empreiteira aceitar o acordo de delação premiada, o sistema "Drousys" era suscetível a falhas e poderia levar os investigadores a acusar indevidamente os políticos acusados de receber propina.

O ex-presidente da Odebrecht Infraestrutura Benedicto Júnior disse só que tomou conhecimento do "Drousys" pela imprensa. O sistema funciona como elo de comunicação entre os operadores que trabalhavam para a Odebrecht e os funcionários do setor de Operações Estruturadas, conhecido como "departamento de propina".

O sistema, segundo o executivo, admitia a duplicidade de codinomes, ou seja, o mesmo apelido poderia ser atribuído a mais de um investigado. Algo semelhante ocorreu em setembro passado, quando veio à tona um erro da Polícia Federal na acusação de uma pessoa identificada pela sigla "JD". A propina foi atribuída ao ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, quando na verdade tratava-se de Juscelino Dourado, ex-chefe de gabinete de Antonio Palocci.

"Poderia ter um codinome duplicado, o mesmo para duas pessoas. Poderia também ter alocação errada em nome de pessoas. Era muita informação e o Departamento de Operações Estruturadas poderia se perder", disse o delator.

Outra polêmica com codinomes também teve Palocci como personagem. O ex-ministro insistiu por muito tempo que não era o "Italiano" citado nas planilhas da Odebrecht. O apelido chegou a ser atribuído ao ex-ministro Guido Mantega, tratado como "pós-Itália".

A dúvida só foi resolvida após as divulgações dos depoimentos da empresa, quando veio à tona a seguinte frase de Marcelo Odebrecht: "Eu só usava (o codinome Italiano) para me referir ao Palocci".

O sistema "Drousys" também permitia que o mesmo político tivesse mais de um apelido.

Os delatores contaram em seus depoimentos que o sistema só foi disponibilizado para eles após a Odebrecht aceitar o acordo de delação.