O Estado de São Paulo, n. 45067, 08/03/2017. Espaço aberto, p. A2

A hedionda anistia ao caixa 2 dos políticos

Por: José Nêumanne

 

A quem interessar possa e imagina que são prioritárias as reformas previdenciária, tributária e trabalhista, necessárias para repor os gastos públicos nos trilhos e, em consequência, a economia toda, para recuperar boa parte dos 13 milhões de empregos perdidos, um aviso de amigo: no País oficial só se fala na política. E que ninguém se engane: a prioridade não é a cláusula de barreira nem a proibição das coligações nas eleições proporcionais. Mas, sim, a anistia ao caixa 2 só para políticos em campanha e a criação de um fundo público de R$ 4 bilhões, prestes a instituir o “me engana que eu pago”.

Andrea Jubé, da sucursal do Valor Econômico em Brasília, fez um relato aterrador sobre o trabalho pertinaz dos líderes das maiores bancadas do Congresso – PMDB, PSDB, PT, PP, PR e PSD – para que essas duas novidades devolvam aos chefões partidários e parlamentares do governo, da oposição ou da neutralidade, de quaisquer credos ideológicos, o sono perdido com as delações premiadas dos 77 da Odebrecht. A pressa aumentou mais com os vazamentos dos depoimentos dos executivos e ex da maior empreiteira do Brasil, principalmente o do dono, Marcelo Odebrecht, ao ministro Herman Benjamin, relator no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) da ação do PSDB, hoje domesticado no governo, contra a chapa Dilma-Temer.

A avalanche foi prenunciada na escolha do ex-ministro de Minas e Energia de Dilma Rousseff, e ex-enfant gaté do ex-presidente José Sarney, Edison Lobão, para presidir a todo-poderosa Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Jornalista medíocre, esse senador do PMDB pelo Maranhão inspirou o slogan da cruzada: não há inconstitucionalidade na anistia anunciada à fraude eleitoral. E proferiu a epígrafe para esclarecer o lema cínico: “Eu quero dizer que é constitucional a figura da anistia, qualquer que ela seja”. Na ocasião, Lobão esclareceu que defende mudanças na legislação que trata das colaborações premiadas. “Delação só deve ser admitida com o delator solto.”

O Palácio do Planalto apoiou o movimento no estilo de apostos, mesóclises e paráfrases do chefe Temer ao anunciar a volta à liderança do PMDB no Senado de Romero Jucá, que caiu do Ministério do Planejamento por ter sido citado em delações premiadas na Lava Jato. Pilhado em gravação feita pelo ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado como autor do mais sucinto e completo resumo da tarefa – “é preciso estancar a sangria” –, ele foi sucedido na liderança do dito governo no Congresso, na qual esperou a tempestade passar, pelo deputado André Moura. Convenientemente, este não é mais chamado de André Cunha, como no tempo em que era vassalo de Eduardo, hoje preso em Curitiba.

E se faltava o apoio do PSDB, que de maior partido de oposição passou a ter hoje a condição de um dos dois principais pilares da manutenção do vice que virou titular por obra e graça do impeachment, cujo processo foi aberto pelo “Caranguejo” acima citado, ele acaba de chegar. O ex-presidente Fernando Henrique, a pretexto de defender o presidente nacional de seu partido, soltou nota oficial na semana passada chamando de “notícias alternativas” – o mesmo que mentiras em linguagem posta a circular por uma assessora de Donald Trump – revelações sobre o financiamento “alternativo” da Odebrecht incriminando o “ínclito” senador Aécio Neves.

Segundo a nota, no importante debate travado no País é preciso fazer distinções. “Há uma diferença entre quem recebeu recursos de caixa 2 para financiamento de atividades político-eleitorais, erro que precisa ser reconhecido, reparado ou punido, daquele que obteve recursos para enriquecimento pessoal, crime puro e simples de corrupção”, avaliou. O conceito seria trágico, mas é desonesto. Caixa 2 chega a ser pior do que propina paga para enriquecimento pessoal, pois corrompe a democracia e é um crime de lesa-pátria.

O principal responsável pela maior revolução social da História do Brasil, o Plano Real, empesteia seu prestígio aliando-se a Jucá, Lobão e Maia. Pois contabilidade ilícita em financiamento eleitoral age como doping no esporte: desequilibra a disputa e leva quem não ganharia à vitória, mudando, negando e subvertendo a escolha do representante ou do governante pelo cidadão. Essa fraude eleva gatuninhos à gestão pública, quebrando o País, desempregando milhões de trabalhadores, furtando os recursos da saúde e da educação, matando e destruindo o futuro de gerações. Criminalizar a sonegação por empresários evita a concorrência desleal, que altera um dos princípios basilares do livre mercado. Permitir que só os políticos usem a fraude para galgar ao poder seria o pior dos privilégios. Et pour cause, anistiá-los é hediondo.

Cabe registrar aqui o desabafo indignado da ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, ao votar pela condenação de José Dirceu, José Genoino e outros maiorais do PT na Ação Penal 470. A presidente da Suprema Corte disse, à época: “Alguém afirmar que houve ilícito com a tranquilidade que se fez aqui é algo inédito em minha vida profissional. É como se o ilícito fosse uma coisa normal e pudesse ser assumido com tranquilidade. É como dizer ‘ora, brasileiro, o ilícito é normal’. A ilegalidade não é normal. Num Estado de Direito o ilícito há de ser processado e punido. Isso me causou profundo desconforto.”

Registro ainda o estupor do relator no TSE da ação do PSDB contra a chapa do PT com o PMDB. Luiz Maklouf de Carvalho contou no Estado que o depoimento de Marcelo Odebrecht deixou Herman Benjamin impressionado “pelo grau de acesso e de domínio que o empresário contou ter ao topo da cadeia de poder”. Na prática, leis foram compradas e as empreiteiras não doaram nada, apenas repassaram recursos públicos para bolsos privados de políticos e agentes públicos.