O Estado de São Paulo, n. 45067, 08/03/2017. Metrópole, p. A15

STF recebe ação que pode tornar aborto legal

Partido pede que sejam suspensos todos os processos sobre a prática até a 12ª semana

Por: Daiene Cardoso

 

Na véspera do Dia Internacional da Mulher, o Supremo Tribunal Federal (STF) recebeu ontem ação que pode resultar na ampla descriminação do aborto até a 12.ª semana de gravidez no Brasil.

No fim do ano passado, a 1.ª Turma do STF apresentou o entendimento em um caso específico de que o aborto até os três meses de gravidez não pode ser considerado crime. Uma ação do PSOL foi protocolada ontem para esclarecer a amplitude da decisão, pois hoje a prática é permitida apenas em caso de risco de vida para a mãe, feto anencéfalo ou estupro.

Na ação, o partido argumenta que, em 2015, 500 mil mulheres no País colocaram em risco suas vidas em abortos clandestinos.

“A cidadania das mulheres está sendo violada”, disse a exdeputada Luciana Genro (PSOL- RS), apoiadora da ação.

A sigla argumenta ainda que as razões jurídicas que criminalizaram o aborto são provenientes do Código Penal de 1940 e incompatíveis com a Constituição de 1988 no que se refere à dignidade da pessoa humana e cidadania. A ação questiona os artigos 124 (que pune com até 3 anos de detenção a mulher que praticar o aborto contra si mesma) e 126 (que prevê prisão por até 4 anos do profissional que realizar a interrupção da gravidez) do Código Penal por “violarem preceitos fundamentais” garantidos às mulheres. Pedese ainda que seja concedida liminar para suspender prisões em flagrante, inquéritos policiais e o andamento de processos.

 

Repercussão. Sonia Coelho, da Marcha Mundial das Mulheres, teme que o momento não seja ideal. “Há instabilidade política e Congresso conservador.” Para Francisco Borba, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP, a ação é “um erro”. “Não caberia ao STF legislar nem reinterpretar cláusulas constitucionais. E tratase de negar a condição de pessoa a um indivíduo que já existe do ponto de vista biológico.” Já o presidente da Comissão de Direito Médico da OAB-SP, Sílvio Valente, acredita que o Brasil seguirá a tendência mundial de flexibilização. “Mas acredito que ainda estamos muito longe de uma mudança na lei do aborto.” Mauro Aranha, presidente do Conselho Regional de Medicina (Cremesp), afirma que a entidade não tem posição.

“É preciso fazer uma ampla discussão.” / COLABORARAM FÁBIO DE CASTRO e MONICA BERNARDES, ESPECIAL PARA O ESTADO

 

Câmara

No ano passado, a decisão do STF repercutiu negativamente na Câmara dos Deputados, que chegou a abrir comissão especial para discutir o tema.

 

 

DEPOIMENTOS

D.F, balconista de 23 anos, que fez um aborto há dez dias

‘Fui tratada como criminosa’ Não tenho condições de sustentar sozinha mais um filho. Procurei o Sistema Único de Saúde assim que descobri a gravidez. Conversei com dois médicos e eles falaram a mesma coisa: que para abortar legalmente teria de conseguir ordem judicial e, como minha gravidez não era fruto de estupro, eu não iria conseguir a autorização. Por isso tive de recorrer ao aborto clandestino. Tive complicações e quando procurei novamente o atendimento público fui muito desrespeitada. As enfermeiras e auxiliares falavam gracinhas e me acusavam de ser responsável pelo que eu estava passando. Só não me deixaram morrer de hemorragia porque minha irmã fez um escândalo. Não me sinto criminosa, mas fui tratada como se fosse.”

 

J.H.R, de 35 anos, decoradora em Olinda (PE)

‘Eu me senti invadida’

Eu fui assaltada e estuprada durante uma viagem de férias. Fiz tudo o que havia para ser feito. Com a ajuda de amigas advogadas consegui a autorização judicial para abortar. Já estava com dez semanas de gestação quando interrompi. Sofri todas as dores e lembranças mais de uma vez. E me senti invadida em ter de aguardar um juiz analisar se eu, que sou a dona do meu corpo, teria ou não o direito de abortar uma criança que estava no meu ventre contra a minha vontade. Digo sem medo de errar que foi uma das piores esperas da minha vida. Entre descobrir a gravidez e conseguir a ordem judicial foram 12 dias. Ninguém merece passar por uma angústia desta. Por isso sou totalmente a favor da descriminalização do aborto.

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Tribunal trilha percurso pela descriminalização

Por: Eloísa Machado de Almeida

 

Tratando-se de um típico tema de proteção de direitos fundamentais de minorias, não é incomum que o aborto seja levado aos tribunais. Isso ocorreu, por exemplo, nos Estados Unidos e na Alemanha, com decisões favoráveis à autonomia das mulheres.

Aqui no Brasil, a descriminalização seria a conclusão de um percurso que vem sendo trilhado pelo próprio STF. A decisão sobre pesquisas com célulastronco, de 2008, estabeleceu a prevalência da vida biográfica sobre a vida em estado potencial, o que pode servir de precedente para reconhecer o direito da mulher para decidir sobre a continuidade, ou não, da gestação.

O STF também ampliou as hipóteses de aborto legal para gestação em caso de anencefalia. A recente decisão, tomada pela 1.ª Turma em 2016, afirmou que não deve ser considerado crime de aborto a interrupção da gestação até sua 12.ª semana, mas teve efeito apenas entre as partes do processo.

Por estes precedentes e com esse questionamento mais amplo, tudo indica que o STF tem a chance de alterar definitivamente a política de aborto no País, transformando o crime em direito.

 

É PROFESSORA DA FGV DIREITO-SÃO PAULO

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Ministério encaminha propostas sobre plano de saúde popular

Grupo de trabalho que fez as sugestões é formado por operadoras, associações médicas e também de seguro

Por: Lígia Formenti

 

O Ministério da Saúde encaminhou à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) as propostas do grupo de trabalho formado para criar um novo formato de plano de saúde, com cobertura mais restrita e preços mais baixos. As sugestões permitem regras mais flexíveis para aumento de mensalidades, restringem o acesso a procedimentos mais caros e ampliam o prazo para que operadores providenciem o atendimento. A proposta fala de “princípios norteadores” e, em tese, limitam-se à nova categoria a ser criada, batizada de planos populares.

Preparada por representantes de empresas de saúde, associações médicas e de seguro, a proposta foi encaminhada pelo Ministério da Saúde à ANS em janeiro. Caberá à agência a palavra final sobre as mudanças.

No documento de três páginas, o grupo de trabalho lista princípios gerais. Entre as regras previstas está a obrigatoriedade de uma segunda opinião médica para que o usuário tenha acesso a procedimentos considerados de alta complexidade.

O grupo diz que a medida pode evitar desperdícios.

A mudança, porém, vai aumentar o tempo de espera para que o usuário do plano de saúde tenha acesso ao procedimento.

Principalmente se combinada com uma outra sugestão do grupo, que afrouxa as regras dos prazos de atendimento. A sugestão é a de que consultas de especialidades que não sejam pediatria, cirurgia geral, clínica médica, ginecologia e obstetrícia possam ser marcadas em até 30 dias após a procura do paciente.

Atualmente, o prazo é de 14 dias. O limite para acesso a cirurgias programadas também mais do que dobra. Em vez dos 21 dias da regra atual, operadoras teriam até 45 dias para providenciar um profissional.

 

Terapias e diagnósticos. Além da maior dificuldade para o acesso, as regras restringem a lista de terapias e métodos de diagnóstico a que o usuário teria direito. Em vez do rol de procedimentos obrigatórios, formulado pela ANS, os usuários de planos de saúde teriam direito a tratamentos e terapias descritos em protocolos idênticos aos adotados no Sistema Único de Saúde. Para o grupo, a restrição garantiria “a segurança do paciente, orientando e uniformizando as condutas durante o atendimento”.

A sugestão prevê ainda que o usuário arque com, pelo menos, 50% do valor do procedimento, seja ele terapia ou exame de diagnóstico. O grupo afirma que, para isso, é preciso haver mudanças nas regras da ANS. A proposta prevê ainda que planos de saúde acessíveis tenham uma lógica de reajuste distinta dos demais planos. Atualmente, planos de saúde individuais são reajustados com base na média de preços cobrada nos planos de saúde coletivos. O texto enviado pelo grupo à ANS defende que o reajuste seja feito com base em uma planilha de custo.

O Ministério da Saúde afirmou, em nota, não defender as medidas. A iniciativa da criação do grupo, porém, foi feita pela pasta, logo após Ricardo Barros assumir o posto.

Por diversas ocasiões, Barros afirmou ser favorável à ampliação do setor de saúde suplementar.

Um fenômeno que, indiretamente, poderia ajudar a reduzir a demanda do Sistema Único de Saúde.

 

Opinião

“As pessoas serão enganadas com os planos baratos que apresentam uma rede insuficiente. Os usuários vão perceber a armadilha quando adoecerem, no momento em que mais precisarem.”

Mário Scheffer

ESPECIALISTA EM SAÚDE PÚBLICA