É ISSO MESMO? Fala do presidente tem erros e distorções de fatos

21/05/2017

 

 

Apesar dos ataques, presidente deixa série de questões sem explicações

 

Na tentativa de desqualificar a gravação e o interlocutor, o pronunciamento do presidente Michel Temer contém uma série de erros, imprecisões e distorções. Ele diz, por exemplo, que o áudio foi editado, mas peritos já atestaram que o trecho mais importante não sofreu qualquer alteração. Também diz que não reagiu contra as revelações de crimes feitas por Joesley Batista na conversa por não acreditar no que contava o empresário, mas as investigações já demonstraram que o delator falava a verdade sobre cooptação de investigadores: um procurador da República foi preso. Leia abaixo as declarações de Temer e, em seguida, uma contextualização sobre esses trechos.

 

EDUARDO CUNHA

“Perícia constatou que houve edição no áudio de minha conversa com o senhor Joesley Batista. Essa gravação clandestina foi manipulada e adulterada com objetivos nitidamente subterrâneos. Incluída no inquérito sem a devida e adequada averiguação.”

Embora peritos tenham apontado a possível edição do áudio, três desses profissionais afirmaram que não houve alteração num dos trechos mais explosivos contra Temer, justamente aquele em que, de acordo com o Ministério Público, o presidente dá aval à informação de que Joesley pagou pelo silêncio do expresidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha.

COMPRA DO DEPUTADO

“Lembrem-se da acusação de que eu dera aval para comprar o silêncio de um ex-deputado. Não existe isso na gravação. Nunca comprei o silêncio, não obstruí a Justiça porque não fiz nada contra a ação do Judiciário.”

Esta é uma das principais linhas de investigação do Ministério Público sobre o envolvimento de Temer com Joesley. No áudio, o empresário diz que recebeu cobranças de Eduardo Cunha mesmo quando o ex-deputado já estava na prisão. Depois, acrescenta que está “de bem” com o deputado e Temer responde: “Tem que manter isso, viu?.” O áudio, com trechos inaudíveis, mostra o presidente endossando o bom relacionamento com um ex-aliado seu condenado a 15 anos de prisão por corrupção. Para o Ministério Público, com base no contexto e em outras provas, o presidente deu aval à compra de silêncio do ex-deputado.

FALTOU REPREENDER

“O autor do grampo relata, no diálogo que tivemos, suas dificuldades. Simplesmente as ouvi. Nada fiz para que ele obtivesse benesses do governo. Não há crime, meus amigos, em ouvir reclamações e me livrar do intercolutor indicando outra pessoa para ouvir as suas lamúrias.”

Em pelo menos duas oportunidades, Temer ouviu de Joesley confissões de prática de crime e nada fez. Depois de Joesley falar que estava “segurando” dois juízes que atuam no processo no qual é investigado, dando a entender que subornou os magistrados, Temer comenta na gravação: “Ótimo, ótimo.” Não há registro de que o presidente tenha solicitado qualquer investigação sobre as afirmações, apesar de sua gravidade. O próprio Temer, em nota divulgada pelo Palácio do Planalto, já havia reconhecido ter ouvido o relato sobre os juízes. Além de nada fazer sobre o caso dos magistrados, Temer também ouve que o empresário tem um informante dentro do Ministério Público e, novamente, nada faz.

Outro ponto a ser destacado, neste trecho do discurso, diz respeito ao interlocutor indicado por Temer para “ouvir lamúrias”. O presidente recomendou a Joesley que procurasse o deputado Rodrigo Rocha Loures, seu aliado, para resolver uma demanda da JBS junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Dias depois, Rocha Loures foi filmado pela Polícia recebendo uma bolsa com R$ 500 mil enviados por Joesley, em claro esquema de pagamento de propina em troca do favor.

FANFARRONICE’ ERA REAL

“Não acreditei na narrativa do empresário de que teria segurado juízes etc. Ele é conhecido falastrão, exagerado. Aliás, depois, em depoimento, disse que havia inventado essa história, não era verdadeira, mera

Novamente, Temer tenta sem sucesso explicar porque não agiu diante das graves confissões feitas por Joesley. Com base nas delações da JBS, as investigações constataram que não era “fanfarronice”. O informante de Joesley era o procurador da República Ângelo Goulart Villela, que acabou preso. Sendo assim, ficou comprovado que havia, de fato, um esquema da JBS dentro do Ministério Público. Segundo o empresário, Goulart recebeu suborno para repassar informações sigilosas sobre a operação chamada Greenfield, que investiga corrupção, lavagem de dinheiro e fraudes em fundos de pensão de funcionários de estatais.

ÁUDIO E DEPOIMENTO

“Quero aqui observar a todos vocês aquilo que alguns da imprensa já notaram: as incoerências entre o áudio e o teor do depoimento. Isso compromete a lisura.”

Não há incoerências entre o áudio e o depoimento de Joesley, pelo contrário. Como publicou o GLOBO, em seu depoimento ao Ministério Público o empresário esclarece vários pontos da conversa, que, feita entre duas pessoas que já sabiam do assunto tratado e se conheciam, tem trechos que parecem cifrados.

VISITA À NOITE

“Confesso que ouvi à noite, como ouço muitos empresários, políticos, trabalhadores, intelectuais e pessoas de diversos setores da sociedade brasileira. No Palácio do Planalto, Jaburu, Alvorada e São Paulo. Trabalho, acho que os senhores sabem, rotineiramente até meia-noite ou mais. E falo até com pessoas da imprensa. Já falei em horas avançadas (...) Nada demais há nisso.”

O que aconteceu na noite de 7 de março no Palácio Jaburu não foi normal. Primeiro, porque o presidente abriu a residência para receber o dono de empresas que foram alvo de cinco investigações da Polícia Federal em menos de um ano. Além disso, Joesley entrou no Palácio, pouco antes das 23h, sem se identificar pelo nome verdadeiro. Disse que só abaixou o vidro e disse que se chamava “Rodrigo”, primeiro nome do deputado Rodrigo Rocha Loures (PMDB/PR), que inicialmente iria junto, mas acabou desistindo. Ao explicar a Temer como entrou, ouviu do presidente: “Melhor assim.” Em seu depoimento, o empresário afirmou que foi recebido pelo presidente “no porão”.

FAVORES DO GOVERNO

“Muito do que foi dito nos depoimentos de Joesley e Ricardo prova apenas falta de sintonia, abundante divergência.”

Se existissem, de fato, divergências entre Temer e Joesley, como o presidente afirmou no discurso de ontem, os dois não teriam chegado a entendimentos no encontro do Jaburu. Na conversa gravada, Joesley diz a Temer que quer “ter uma sintonia” com o presidente para conversar com o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. O empresário sugere que pretende influenciar na escolha dos presidentes do Cade e da CVM. Temer não interrompe a conversa e inclusive autoriza Joesley a procurar Meirelles e falar que tem sua autorização: “Você deveria falar com ele.”

 

O globo, n.30603 , 21/05/2017. PAÍS.  p. 4