ENTREVISTA - Jorge Familiar

Juliano Basile

04/05/2017

 

 

A política de ajuste fiscal e a aprovação de reformas para melhorar o ambiente de negócios deverão impulsionar os investimentos em infraestrutura no Brasil, avaliou o vice-presidente do Banco Mundial para a América Latina e o Caribe, Jorge Familiar. Por outro lado, o país não deve deixar de investir em programas sociais para proteger os mais pobres, especialmente em educação e na capacitação para o trabalho.

Na visão de Familiar, o fim da "época dourada" dos altos preços das commodities trouxe novos desafios para a América Latina e uma nova agenda geral de desenvolvimento para a região.

Essa agenda implica ajustar as contas fiscais para haver estabilidade macroeconômica no médio e no longo prazo. "É preciso também assentar as bases para que o setor privado possa se desenvolver e criar emprego", continuou.

Por fim, é necessário construir capital humano, o que "implica investir de maneira eficiente em temas como a qualidade de educação e proteção para os mais vulneráveis", afirmou Familiar.

Responsável por uma carteira de projetos estimada em US$ 31 bilhões para atuação em 31 países, Familiar prefere não falar em cifras, mas na qualidade dos projetos para infraestrutura na região. "Nós precisamos mudar a natureza do debate no sentido de não ver apenas o que nos falta investir, mas em gastar melhor", defendeu.

A seguir os principais trechos da entrevista:

 

Valor: Qual é o maior problema para se fazer investimentos em infraestrutura na América Latina?

Jorge Familiar: Falamos muito sobre infraestrutura ao longo dos anos e nos focamos muito em quanto nos falta investir e gastar na América Latina e no Brasil. Agora, precisamos mudar a natureza do debate no sentido de não ver apenas o que nos falta investir, mas em gastar melhor. É preciso mudar o diálogo para verificar quais projetos poderão nos permitir preencher as lacunas de serviços com a população latino-americana. Creio que é uma mudança de filosofia importante.

 

Valor: O papel do setor privado será essencial num momento em que muitos países, como o Brasil, vivem a necessidade de consolidar as suas contas do ponto de vista fiscal?

Familiar: Primeiro, é importante reconhecer que houve um período grande de bonança com os preços altos das commodities e, agora, vivemos um momento externo muito distinto em que os países têm que cortar gastos e fazer ajustes. Então, temos que verificar como conciliar essa visão de que é necessário investir em infraestrutura com outra diferente de gastar melhor com recursos públicos escassos. A resposta é que temos que atrair investimentos por parte do setor privado. Há um renovado interesse da região de explorar as parcerias pública-privadas (PPPs). Isso requer muitas coisas. É preciso um marco regulatório sólido que gere confiança.

 

"É preciso fazer as reformas, assentar as bases para que o setor privado possa se desenvolver e criar emprego"

 

Valor: O que mais é necessário para atrair investidores?

Familiar: Há várias questões especificas para atrair investidores. Deve-se ter regras institucionais sólidas. Fazer PPPs pode não ser tão difícil, mas fazê-las bem pode ser. É preciso planejar os projetos de tal forma que sejam atrativos. Deve-se ver quais são as prioridades de maneira a identificar quais projetos darão mais retornos para a sociedade. E devemos também, desde logo, desenhar as transações de uma forma em que se possa transferir os riscos do setor privado. O objetivo, ao final das contas, de uma PPP exitosa é que se execute da melhor maneira possível e que a transação não acabe se convertendo em dívida pública ao longo dos anos. Para isso se requer expertise das agências regulatórias e separação das que assinam e das que regulam. Uma coisa é assinar e outra é regular.

 

Valor: A política fiscal é capaz de atrair mais investidores?

Familiar: Acho que há vários ângulos para essa questão. Uma política fiscal para controlar os gastos é muito importante, mas deve ser feita de forma a proteger os mais vulneráveis. Deve-se também buscar mais eficiência sobre o gasto público e, por fim, abrir espaço para tornar o mercado atrativo para que investidores privados ocupem espaços vagos. Isso se aplica ao Brasil, mas também aos demais países. Essa é uma questão importante em todo o hemisfério.

 

Valor: Nesse contexto, o Brasil é o país que está adotando medidas mais fortes na área fiscal?

Familiar: Sim, o Brasil está tomando passos importantes em matéria de consolidação fiscal. É um sinal muito bom, pois, desde logo, assegurar a estabilidade econômica é fundamental para assentar as bases para o crescimento e para gerar um entorno atrativo a investimentos. Outros países estão adotando medidas semelhantes, mas o Brasil está adotando medidas significativas.

 

Valor: A reforma trabalhista no Brasil poderá atrair investidores e ajudar os projetos em infraestrutura?

Familiar: Eu não conheço os detalhes da reforma trabalhista no Brasil, mas creio que é fundamental fazer as reformas necessárias para facilitar as atividades do setor privado e a geração de empregos. É preciso assentar as bases para que o setor privado possa se desenvolver e criar emprego, contribuir com a redução da pobreza e investir em infraestrutura. Se verificarmos o que ocorreu na década dourada das commodities, a redução da pobreza e da desigualdade ocorreu com mais e melhores empregos, sobretudo, para trabalhadores com níveis de capacitação menores. Hoje, os motores de crescimento que vimos na década dourada não estão mais presentes e estamos trabalhando para capacitar novos motores. O investimento em infraestrutura é um complemento importante para melhorar a produtividade, mas não é o único. Creio que dois ingredientes são necessários para assentar as bases para o crescimento futuro. O primeiro é ter um ambiente macroeconômico ordenado para o médio prazo. O segundo é ter um clima que permita ao setor privado gerar empregos, melhores salários e continuar essa tendência tão positiva na região de redução da pobreza e da desigualdade.

 

Valor: A posição do governo brasileiro contrária ao protecionismo e mais favorável ao ingresso de capital estrangeiro deverá impulsionar a infraestrutura no país?

Familiar: Achamos que sim e por vários motivos. A abertura atrai investimentos, abre a possibilidade para a vinda de recursos do exterior e para apoios ao desenvolvimento de projetos. Há também intercâmbios de conhecimento que têm uma contribuição favorável à produtividade.

 

Valor: O fato de o Brasil e a Argentina adotarem posição pela abertura de suas economias deve ajudar a América Latina como um todo?

Familiar: Nós vemos com bons olhos esse renovado interesse de falar sobre integração regional. O que está ocorrendo com a Aliança do Pacífico e o Mercosul procurando uma nova ótica de integração regional e com uma visão aberta é algo muito interessante para apontar ao crescimento da economia regional.

 

Valor: E o papel do BNDES que, agora, não é mais tão condutor nos projetos? O espaço para os demais bancos financiar projetos é algo positivo para o setor de infraestrutura no Brasil?

Familiar: No Brasil como em outros países da região há espaço para pensar com cuidado sobre qual é a regra institucional ótima para maximizar os investimentos em beneficio dos brasileiros e dos latino-americanos. Deve-se fazê-lo cuidando claramente do ângulo macroeconômico e fiscal que estamos vivendo neste momento. Há oportunidades para melhorar as instituições e isso se aplica a todos os países. Há espaço para aprimorar os marcos regulatórios e vemos um debate distinto de país para país sobre quais as instituições ótimas para os debates que estamos vivendo. Acho favorável que essas discussões estejam ocorrendo e são uma parte importante para o êxito de realizar investimentos importantes em infraestrutura.

 

"Estamos em época de ajuste, e é importante que os recursos públicos sejam usados para proteger os mais pobres"

 

Valor: Mas o fim do papel condutor do BNDES ajuda?

Familiar: Não há uma solução única. Há diferentes modelos que envolvem um distinto nível de participação do setor privado e do setor público e vemos que a região está tratando e experimentado modelos muito interessantes. Na Colômbia, por exemplo, temos uma instituição para financiar infraestrutura com controle público e participação multilateral e privada. É uma experiência interessante. Nos outros países, os bancos de desenvolvimento têm um papel muito importante. Em alguns, os bancos privados atuam muito com mobilização de recursos e as instituições públicas atuam mais no acompanhamento das regras e concessões.

 

Valor: O novo Banco de Desenvolvimento dos Brics (NDB) deverá ser forte em infraestrutura?

Familiar: Os organismos multilaterais têm um papel para apoiar o desenho dos marcos regulatórios e das regras institucionais. Alguns países nos pedem ajuda neste sentido e também no desenvolvimento de transações especificas. Podemos contribuir para desenhar projetos bancáveis e apoiar os países nesse sentido como também podemos apoiar o financiamento para fazer as transações. Creio que há espaço para inovar muito. Fizemos uma operação na Argentina sobre aquisição de energia renovável e outorgamos uma garantia para o governo. Do outro lado, uma série de empresas tomaram a garantia e a cooperação financeira está outorgando financiamento para empresas que participaram. Desde logo, as oportunidades são muitas. O mercado é enorme. A lacuna é imensa. Então, há espaço para que muitos organismos multilaterais apoiem neste sentido. E também para que trabalhemos juntos. Estamos fazendo isso também em operações de financiamento direto em projetos de infraestrutura. Por exemplo, o metrô de Lima é um investimento direto em infraestrutura que conta com financiamento de organismos multilaterais.

 

Valor: O Banco Mundial pode ajudar mais com investimentos diretos, com apoio técnico ou com o seu papel de garantidor?

Familiar: São todas essa alternativas. Temos uma ferramenta muito ampla que podemos colocar à disposição dos países. Em alguns casos, é apoio técnico; em outros, é apoio ao financiamento do governo. Apoiamos as reformas para desenvolver, por exemplo, o marco regulatório das PPPs. Fazemos assistência técnica direta para mudanças regulatórias e para melhorar as instituições, assim como a participação direta nas transações. Fazemos seguros contra risco-país e contra risco politico. E também fazemos assessorias especificas nas transações.

 

Valor: Existe uma demanda crescente para seguros contra riscos políticos na América Latina?

Familiar: Não vejo um crescimento muito importante desse produto em particular na América Latina neste momento. Tivemos espaço para garantias, mas não tanto para seguros contra riscos políticos.

 

Valor: Vê crescimento de seguros cambiais nos projetos?

Familiar: Como parte da estruturação em alguns mercados buscamos dar financiamento em moeda local. Há aí uma questão de desenvolvimento dos mercados financeiros que é uma parte importante para o êxito no setor de infraestrutura. Na medida em que tivermos mercados financeiros mais profundos e financiamentos em longo prazo na moeda local isso também ajuda a dar maior desenvolvimento ao setor de infraestrutura.

 

Valor: Em quais setores os investimentos são mais urgentes?

Familiar: No Brasil, eu não tenho uma ideia especifica. Mas, na região, avançamos bastante em várias áreas, como, por exemplo, estradas. Em outras, estamos com muitas necessidades. Me chama a atenção o pouco desenvolvimento que temos no tratamento de água. Apenas 30% da água que é usada na região é tratada. Isso quer dizer que 70% da água que contaminamos nós lançamos nos rios e mares de maneira direta. É um desperdício em dobro. Estamos contaminando e aumentando os custos de recuperação. Isso é parte da necessidade de mudar o debate sobre gastar mais para gastar melhor.

 

Valor: A demanda para projetos em infraestrutura na América do Sul está em quanto? Fala-se em US$ 250 bilhões?

Familiar: Quando começamos o debate assim, de que precisamos de US$ 250 bilhões, isso se converte num debate macroeconômico. Quando se começa a conversa assim, se diz que do ponto de vista fiscal ficamos limitados à necessidade de investir isso. Mas temos uma série de necessidades, lacunas que devemos preencher do ponto de vista dos serviços. Temos que discutir eficiência na infraestrutura, a energia que se perde em determinados sistemas, a água desperdiçada. Temos que verificar como tornar o uso mais eficiente. Acho que a cifra para a América Latina é de US$ 180 bilhões para preencher as lacunas em infraestrutura. Há muitas formas de estimá-las.

 

Valor: Qual a sua avaliação sobre a necessidade de se aprofundar os programas sociais em tempos de consolidação fiscal no Brasil?

Familiar: Na época dourada das commodities, uma parte da redução da pobreza se explica por esses programas sociais. Agora que estamos no momento de ajuste é importante que os recursos públicos sejam utilizados para proteger os mais pobres. Os programas devem identificar os mais vulneráveis e permitir que os indivíduos contribuam com a agenda do país, como educação e saúde. Isso é muito importante. Construir capital humano implica em investir de maneira eficiente em temas como a qualidade de educação e proteção aos mais vulneráveis.

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4245, 04/05/2017. Brasil, p. A8.