Infecções sem relação

Ana Lucia Azevedo

29/06/2017

 

 

Estudo em humanos revela que contágio prévio por dengue não agrava a zika

Os vírus da dengue e da zika são parentes próximos. Pertencem à mal afamada família dos flavivírus. E desde que o zika emergiu Brasil com agressividade capaz de causar defeitos congênitos tão devastadores quanto a microcefalia e a síndrome de Guillain-Barré, cientistas suspeitam que um poderia agravar os efeitos de outro. Ou seja, onde tem dengue a zika seria pior. Uma nova pesquisa, porém, afasta essa possibilidade — uma informação importante para o desenvolvimento e o sucesso de vacinas. A prévia infecção por dengue, diz o estudo, não agrava a zika.

Coordenada pelo presidente da Sociedade Brasileira de Virologia, Maurício Lacerda Nogueira, a pesquisa mostra que anticorpos para a dengue não pioram a infecção por zika por, em tese, inadvertidamente facilitarem a multiplicação deste último vírus.

 

IMUNIDADE PARCIAL

Uma teoria propõe que os anticorpos da dengue provocariam uma espécie de imunidade parcial em pessoas que contraíssem zika. O sistema de defesa acharia que tudo está sob controle e o vírus invasor teria as portas escancaradas para invadir células, se multiplicar e causar a doença.

É a mesma linha teórica empregada para explicar a dengue hemorrágica, da qual 90% dos casos são de pessoas que tiveram o infortúnio de contrair mais de um dos quatro subtipos do vírus da dengue em diferentes ocasiões.

Este é o primeiro estudo a contradizer a teoria. E também o primeiro a ser realizado com seres humanos. Os anteriores se baseavam em investigações em culturas de células, camundongos ou macacos.

A pesquisa foi baseada na análise de 65 pessoas com quadro de síndrome febril — nome guarda-chuva para dengue, zika e outras infecções com sintomas de febre e dores. Todas as pessoas eram de São José do Rio Preto, em São Paulo, cidade em que a dengue é endêmica e que teve epidemia de zika em 2016.

Num país como o Brasil, assolado desde os anos 1980 por epidemias de dengue, o estudo tem ampla dimensão. Boa parte da população do país já foi exposta aos vírus da dengue e, desta forma, tem anticorpos (as defesas naturais produzidas pelo organismo) contra ele.

Estudos publicados recentemente, inclusive um de grande repercussão na revista americana “Science”, mostraram que, em animais, os anticorpos contra a dengue poderiam potencializar a infecção pelo vírus da zika. E se chegou a cogitar que os anticorpos da dengue seriam a explicação para os casos mais graves de zika congênita no Nordeste, região historicamente muito afetada pela dengue.

O organismo da gestante que teve dengue antes não teria defesas adequadas para impedir a propagação do vírus da zika. Este se multiplicaria, atravessaria a placenta e acabaria por devastar o sistema nervoso central e outras partes do organismo do feto em desenvolvimento.

— Mas em seres humanos vimos que isso não acontece. Pessoas que tiveram dengue e depois zika não apresentaram um quadro mais grave — afirma Nogueira, que é professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto.

A pesquisa contou ainda com a colaboração de cientistas do Instituto Butantan, da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e outras duas universidades americanas. Ela foi publicada este mês na revista científica “Clinical Infectious Diseases”.

Os pesquisadores fizeram análises genéticas dos vírus isolados no sangue dos pacientes. A maioria, 45, tinha zika. Outros 20, dengue. Dos pacientes com zika, 78% já haviam tido dengue. Dos com dengue, 70% já haviam sofrido antes com a mesma doença.

De acordo com o virologista, a concentração de zika no sangue não era maior nas pessoas com dengue prévia.

— Na verdade, se estima que 70% da população de São José do Rio Preto tenha anticorpos para dengue. No Rio de Janeiro, esse percentual sobe para 80%. Se a dengue agravasse a zika, o impacto seria devastador. Assim como também teríamos que repensar uma vacinação contra a dengue, que finalmente está próxima. Nosso estudo mostra que não há esse problema — observa Nogueira.

Segundo ele, cerca de 10 mil pessoas já receberam a vacina experimental contra a dengue desenvolvida pelo Instituto Butantan.

O globo, n.30642 , 29/06/2017. SOCIEDADE, p. 24