STF: delação premiada só pode ser revista em caso de ilegalidade
André de Souza e Tatyane Mendes 
30/06/2017
 
 
Para Janot, decisão é ‘histórica’ e reforça o instituto da colaboração

-BRASÍLIA- O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu ontem, por 8 votos a 3, que os acordos de delação não podem ser revistos depois de homologados. Mas foi aberta uma exceção que permitirá a rescisão do acordo ou de parte dele se ficar comprovado que houve irregularidades na celebração da colaboração. Além disso, caso o delator descumpra os termos do acordo, também poderá perder seu benefício.

Após o resultado do julgamento, que tomou quatro sessões do STF, o procuradorgeral da República, Rodrigo Janot, responsável por vários acordos de colaboração importantes, como os da Odebrecht e da JBS, comemorou. Ele disse que é uma decisão histórica que fortalece o instituto da delação premiada. Também afirmou ser óbvio o entendimento de que, caso surja um fato novo que comprometa a legalidade, o acordo seja revisto. Segundo o procurador, só casos como tortura e coação poderiam resultar numa reavaliação dos acordos.

REVISÃO DE BENEFÍCIOS

Janot disse ainda que benefícios concedidos aos delatores da JBS podem ser revistos se as apurações mostrarem que eles são os líderes da organização criminosa investigada pelo Ministério Público Federal.

— Agora, nesse juízo inicial, o que se vê é que a liderança da organização criminosa aponta para o lado oposto — disse Janot.

Os ministros decidiram que a intervenção do plenário só pode ocorrer num momento posterior, e, ainda assim, restrita a algumas situações. O relator do caso em julgamento foi Edson Fachin, cujo voto foi seguido pelos ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello, Cármen Lúcia, Dias Toffoli e Alexandre de Moraes.

O ministro Ricardo Lewandowski não compareceu à sessão de ontem, mas já tinha expressado a posição de que o plenário do STF pode fazer uma análise ampla ao fim das apurações, inclusive revogando toda a delação, se considerar que o acordo feriu a Constituição ou alguma lei.

Com algumas variações, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello tiveram uma posição que dava mais poder ainda ao plenário. Para eles, cabe ao colegiado, e não ao relator, homologar o acordo de delação. Marco Aurélio entendia inicialmente que essa era uma tarefa do relator, mas, diante das divergências sobre a extensão dos poderes do plenário para rever um acordo, mudou de posição. Gilmar ironizou os vaivéns do julgamento:

— Cada vez eu fico mais confuso. Me parece que houve realmente uma metamorfose ambulante neste julgamento.

O STF entendeu, por unanimidade, que Fachin é de fato o relator dos processos relacionados à JBS. E, por nove votos a dois, a Corte decidiu que cabe apenas a ele fazer a homologação. Mas, durante as quatro sessões do julgamento, alguns ministros avançaram para a discussão da extensão dos poderes do plenário depois da homologação. Por oito votos a dois, o STF entendeu que cabia analisar esse tema também. Apenas Marco Aurélio e Gilmar Mendes foram contra.

Dos 11 ministros, dez já tinham se manifestado parcial ou totalmente nas sessões anteriores. Faltava o voto da presidente do tribunal, Cármen Lúcia, que defendeu o uso das delações premiadas.

— É um instituto essencial, muito bem-vindo à legislação penal — disse Cármen.

Para o procurador-geral, permitir a revisão do acordo quando não há nenhuma ilegalidade e quando o delator cumpre todas as cláusulas traria uma insegurança muito grande aos réus colaboradores.

— É uma decisão histórica, que fortalece e muito o instituto da colaboração premiada, incorporada ao direito brasileiro, fruto de tratados internacionais subscritos pelo Brasil.

Em entrevista após a sessão, Luís Roberto Barroso também entendeu que as delações não estão ameaçadas com a decisão do STF. Na avaliação do ministro, as ilegalidades que podem justificar a revisão do acordo são casos excepcionais e raros.

— Nós abrimos uma mínima exceção, por sugestão do ministro Alexandre de Moraes: se houver um fato superveniente excepcionalíssimo, coisas totalmente fora da normalidade, o que, como regra geral, não ocorre.

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Na crise, STF decide reafirmar seu poder

José Casado 

30/06/2017

 

 

Canotilho, José Joaquim Gomes. A sombra desse jurista português pairou nas últimas duas semanas sobre o plenário do Supremo Tribunal Federal, durante o julgamento da autonomia do Ministério Público para fazer acordos de delações premiadas, como nos casos recentes dos grupos JBS e Odebrecht.

Esse professor de 75 anos de idade, da freguesia de Pinhel e dono de uma cátedra na Universidade de Coimbra, acabou sendo o grande vencedor do embate no STF. Os juízes recorreram aos seus argumentos ao analisar a importância da proteção à segurança jurídica no regime democrático: o estado de direito é, sobretudo, o estado da confiança — ele defende. Foi repetido até por aqueles que, com nuances, consideram que o Supremo deve exercer um papel moderador para evitar mais instabilidade política derivada do clima de confronto entre poderes que permeia as investigações da Operação Lava-Jato sobre a corrupção político-empresarial.

O julgamento resultou num acordão pelo qual, resgatado o juiz Gilmar Mendes do isolamento, abriu-se uma brecha para revisão de acordos de delação premiada realizados pelo Ministério Público. Em princípio, ficou restrita à possibilidade de anulação do prêmio aos delatores em caso de não cumprimento do que foi expresso no contrato de colaboração ou se, durante o processo, for descoberto algum tipo de ilegalidade.

Numa circunstância de conflito entre poderes, os juízes decidiram reforçar o poder do Judiciário. Não revogaram, mas circunscreveram a autonomia do Ministério Público à letra da legislação sobre colaboração premiada, ressalvando a possibilidade de interferência ainda que de forma restrita na hora da sentença.

O Supremo escolheu reafirmar seu poder até o limite. Já era um dos tribunais mais poderosos do planeta, por ser Corte constitucional e acumular funções penais e de recursos. Nos julgamentos, cria Direito Constitucional — como tem repetido o teórico Canotilho, o Brasil tem duas Constituições, a de 1988 e outra feita pela jurisprudência do STF.

Em tese, nada muda nos processos da Lava-Jato no Supremo. Na prática, abriu-se uma vereda para eventual revisão na hora da sentença no Supremo. Em nome da confiança do Estado e da segurança jurídica.

 

O globo, n. 30643, 30/06/2017. País, p. 4