Lei desacreditada é lei inútil

Almir Pazzianotto Pinto

26/04/2017

 

 

Os obstáculos superados pelo governo para aprovar a lei que libera a terceirização antecipam as barreiras asnáticas e ideológicas que dificultarão a reforma trabalhista. Aos opositores da modernização pouco importa que 13,5 milhões de cidadãos se encontrem desempregados e outros tantos sobrevivam com ocupações temporárias e do comércio ambulante. A crise é tão profunda que o trabalho por conta própria deixou de ser opção. Em 2016 o Brasil perdeu 1,4 milhão de autônomos, assim chamados todos os que ganham a vida como pessoa física.

A Lei n.º 13.429/17 demonstra como a falta de objetividade gera consequências negativas. Basta observar que o contrato civil de prestação de serviços, vulgarmente denominado terceirização, foi incorporado à Lei n.º 6.019/74, que disciplina o trabalho temporário. A trintenária discussão cingia-se à diferença entre atividade-fim e atividade-meio, causada pela má redação do inciso III da Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (pela qual fui, também, responsável). A rigor, bastaria um único artigo de lei que reconhecesse a terceirização de serviços como negócio legítimo, independentemente da natureza e da finalidade. Em outras palavras, o velho problema resolver-se-ia corrigindo o inciso III.

A prestação de serviço é apenas uma das modalidades de contratos disciplinados pelo Código Civil. O artigo 594 é límpido e incisivo: “Toda espécie de serviço ou trabalho lícito, material ou imaterial, pode ser contratada mediante retribuição”. Os requisitos para organização de empresa encontram-se na legislação civil ou comum. Não concernem à legislação trabalhista. O avanço trazido pela Lei n.º 13.429/17 destina-se a afastar a insegurança jurídica provocada pela funesta separação entre atividade-fim e atividade-meio, criada pela Justiça do Trabalho, mas ignorada na legislação empresarial e jamais esclarecida pela jurisprudência.

Os contratantes de serviços terceirizados não devem, porém, sentir-se à vontade e protegidos contra riscos e ciladas. Rigorosas cautelas devem ser adotadas para evitar que trabalhadores terceirizados sejam postos em regime de subordinação e dependência direta, que possa caracterizar relação de emprego. Lembrem-se das dolorosas experiências com as cooperativas de trabalho.

A lei da terceirização é um alento, mas não basta para afastar o fenômeno do passivo oculto, pesadelo de todos os empregadores, sejam empresas, associações, entidades culturais, profissionais liberais ou instituições beneficentes. Cada empregado traz na mochila alguma pretensão ignorada e futura, que o estimula a ajuizar ação trabalhista sem riscos, sem custos, sem motivos. A quitação, passada após a extinção do contrato de trabalho de conformidade com as exigências legais, valerá ou não, segundo a opinião do juiz da causa.

O panorama de total insegurança jurídica tornou-se motor do desemprego. A globalização, a invasão de produtos chineses, a informatização e o excedente mundial de população contribuem para o incessante aumento da quantidade de trabalhadores excluídos do mercado no Brasil e no mundo, mas são fatores independentes do nosso controle e vontade. Resta-nos cuidar daquilo que se encaixa dentro do nosso raio de ação, e aqui se inserem a legislação do trabalho, a estrutura sindical e o processo judiciário do trabalho.

Para conferir atualidade à legislação trabalhista é impossível contar com a colaboração do Partido dos Trabalhadores (PT) e das legendas que lhe dão suporte, como o PDT, o PC do B e o PSOL. Atraso, interesses obscuros e rancor ideológico são empecilhos à aceitação da verdade. Recente passagem pela Comissão Especial da Reforma Trabalhista da Câmara dos Deputados, onde participei de debates sobre essa necessária mudança, revelou-me que parlamentares da oposição petista insistem em ignorar fatos corriqueiros e exibem mentes impermeabilizadas. Causou-me decepção observar como deputados, advogados e dirigentes sindicais podem ser indiferentes aos problemas que contaminam as relações individuais e coletivas de trabalho, para recusarem a criação de novos instrumentos destinados à conciliação de interesses divergentes, sem a intervenção obrigatória, onerosa e morosa do Poder Judiciário. Simples questão sobre a validade das negociações, resolvida pela Constituição no seu artigo 7.º, deu ensejo a intervenções coléricas e intermináveis. O mesmo ocorreu no debate sobre a existência de 19 mil sindicatos, mantidos, na maioria, pelo imposto sindical.

Em março de 1985, antes da data marcada para a posse de Tancredo Neves na Presidência da República, Jair Meneguelli, presidente da CUT e fundador do PT, já lhe declarava guerra. Quando José Sarney, em meio a grave crise, convidou as centrais e as confederações de trabalhadores para discutirem medidas de combate à inflação e ao desemprego, a CUT e o PT fugiram ao diálogo. Os esforços desenvolvidos em 1985 e 1986 no sentido da celebração de pacto social foram minados pelos dirigentes da central sindical e do partido, responsáveis pela deflagração de milhares de greves.

O presidente Michel Temer não deve esperar conduta responsável dos petistas. Deles virão acusações e discursos palanqueiros, como alguns que ouvi na Câmara dos Deputados. Para o PT e aliados, a corrupção, a recessão, o endividamento do Estado, o declínio da indústria, do comércio, dos transportes, do crédito e o pesadelo vivido por 25 milhões de desempregados e subempregados não devem ser debitados aos 13 anos de governo petista.

Lei desacreditada é lei inútil. O capital, por sua vez, é móvel e covarde. Não permanece onde é maltratado.

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Entre a lei e a justiça

Por: Ruy Martins Altenfelder Silva

O leitor comum, diante do noticiário político recente, sente-se testemunhando profundo embate entre os Poderes da nossa República. À medida que juízes e tribunais figuram com cada vez mais proeminência no País, ouve-se da própria presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministra Cármen Lúcia, que magistrados brasileiros se tornaram nos últimos tempos alvo de ataques, de tentativas de cerceamento de atuação constitucional. Enquanto isso, tramita no Congresso Nacional projeto que pretende atualizar a lei de abuso de autoridade, visto por alguns como medida necessária contra excessos do Judiciário e, por outros, como meio de criminalizar a ação legítima de magistrados.

Como ensina o ministro Luís Roberto Barroso, o atual Estado Democrático de Direito, em que vivemos, é uma forma de organização política concebida na Europa após a 2.ª Guerra, a qual entrou em vigor efetivamente no Brasil com a Constituição de 1988. Segundo Barroso, a evolução histórica que nos trouxe até aqui teria partido da concepção moderna de Estado estabelecida pela Revolução Francesa.

Se no Estado pré-moderno as normas advinham de fontes diversas – monarquia, Igreja, feudos, etc. –, que julgavam em nome do bom senso, de tradições e de um Direito “natural” (jusnaturalista), a Revolução impôs um conjunto único de leis, monopólio do Estado (juspositivista), teoricamente formulado pela razão e expresso como vontade da maioria. No Estado moderno dos iluministas, a lei é soberana. E quem faz a lei é o Legislativo. Ao Judiciário, conforme os próprios responsáveis por separar os três Poderes, cabe fazer cumprir a lei, não questioná-la. Para Montesquieu, um juiz seria “a boca que pronuncia as palavras da lei”; para Voltaire, “o primeiro escravo da lei”.

O século 20 trouxe duas grandes guerras e, com elas, a inquietação de que cumprir leis talvez não fosse o suficiente. Diante dos horrores dos regimes nazista e fascista, o mundo ocidental se questionou se não haveria princípios, baseados em valores éticos universais, aos quais nenhuma lei pudesse sobrepor-se, sob o risco de ser injusta, ainda que legítima. Princípios tais como a dignidade humana.

Após a 2.ª Grande Guerra, a dignidade tornou-se um dos grandes consensos éticos do mundo ocidental, materializado em declarações de direitos, convenções internacionais e Constituições. Surgiu, assim, um novo Direito Constitucional, pós-positivista, que “busca ir além da legalidade estrita” e “não trata com desimportância as demandas do Direito por clareza, certeza e objetividade, mas não o concebe desconectado de uma filosofia moral e de uma filosofia política”, como observa o ministro Barroso. Foi esse movimento que nos trouxe à Constituição de 1988.

Esse novo constitucionalismo, que entroniza, acima da ordem jurídica, princípios de inegável dimensão subjetiva, como o da dignidade humana ou o da razoabilidade (toda lei deve ser adequada a seu propósito, necessária e proporcional), encontrou aqui uma democracia recém-nascida, sedenta de direitos civis e sociais. E que, não por acaso, passou a contar com amplas forças de controle de constitucionalidade; de forma concentrada, pelo STF, ou difusa, por todo e qualquer juiz ou tribunal, que passaram a ocupar lugar de destaque no imaginário coletivo brasileiro. “A supremacia formal e axiológica” da nossa Constituição deu aos operadores jurídicos a prerrogativa de invalidar, por inconstitucionais, leis e medidas normativas – quando não a prerrogativa mais controversa de convocar ações do legislador (declarações de inconstitucionalidade por omissão, decisões integrativas, etc.), sob o argumento de zelar pelos direitos fundamentais contemplados na “Carta cidadã”. Contexto que, não raro, vem provocando o embate entre Poderes testemunhado pelo leitor.

A questão que se coloca é de limites. De decidir a margem de interpretação que se deve dar aos guardiões da constitucionalidade. E é acerca disso que divergem defensores e críticos do que se convencionou chamar de judicialização do Direito ou ativismo judicial.

Divergência que se dá mesmo entre juristas de inquestionável reputação e saber, como se vê nas críticas feitas pelo professor Ives Gandra da Silva Martins à atuação do STF, para quem o Supremo estaria “invadindo a esfera de competência do Congresso Nacional”, o que traria “muito maior insegurança do que certeza no Direito e na vida dos Direitos” (Revista Brasileira de Direito Constitucional, n.º 18, julho/dezembro de 2011). Enquanto o ministro Barroso, embora enumere diversas ressalvas ao ativismo judicial em sua obra, afirma acreditar que “eventual ação contramajoritária do Judiciário (contrária aos representantes da maioria) em defesa dos elementos essenciais da Constituição se dará a favor e não contra a democracia”. Especialmente, ressalta, “em países de redemocratização mais recente, onde o amadurecimento institucional ainda se encontra em curso, encontrando uma tradição de hegemonia do Executivo e uma persistente fragilidade do sistema representativo”.

O embate hoje protagonizado pelo Judiciário transcende disputas políticas atuais, refletindo transformações profundas do Direito brasileiro.

Diante da realidade política vivida pelo País, impulsionada principalmente pelas listas que nos chegam pelos noticiários, essa discussão tem ultrapassado os meios acadêmicos e jurídicos.

Por julgar as transformações do Direito uma questão de suma importância para as ciências jurídicas nacionais, a Fundação Bunge elegeu esse um dos temas do Prêmio Fundação Bunge. Precisamos ampliar essa discussão.

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PRESIDENTE DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS JURÍDICAS, É CURADOR DOS PRÊMIOS FUNDAÇÃO BUNGE

 

O Estado de São Paulo, n.45116 , 26/04/2017. ARTIGOS, p. A2