Confronto entre Gilmar e Janot chega às famílias

Maíra Magro e Lúisa Martins

10/05/2017

 

 

O pedido de impedimento do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, feito na segunda-feira pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, trouxe um novo capítulo à guerra travada pelos dois publicamente. Ontem, Janot passou a ser alvo de insinuações porque sua filha atua como advogada em casos administrativos ou trabalhistas para a Braskem e a OAS, envolvidas na Operação Lava-Jato.

Agora caberá à presidente do Supremo, Cármen Lúcia, decidir o que fazer sobre o pedido de impedimento de Gilmar. Ela poderá julgá-lo sozinha ou optar por recorrer ao plenário do STF. A Corte se vê, porém, diante de um impasse, porque a discussão pública sobre o impedimento de colegas sempre foi vista como tabu pelos seus integrantes.

Janot vinha estudando havia algum tempo pedir o impedimento de Gilmar na Lava-Jato, por suposta imparcialidade. A intenção inicial era apontar comentários públicos do ministro sobre assuntos que viria a julgar e os contatos dele com pessoas do governo investigadas na operação. A decisão de Gilmar que soltou o empresário Eike Batista acabou gerando um argumento mais concreto.

Eike é cliente do escritório do advogado carioca Sérgio Bermudes, em que atua a mulher de Gilmar, Guiomar Mendes. No habeas corpus que livrou Eike da prisão preventiva, o empresário foi defendido por um outro escritório.

Janot argumenta que, pelas regras do Novo Código de Processo Civil (CPC), esse detalhe não importa. Segundo o artigo 144 do CPC, o juiz não poderá atuar no processo "em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim (...), mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório".

O pedido de Janot fez surgir, na sequência, questionamentos sobre sua própria atuação. A filha do procurador trabalha em um escritório de advocacia que tem entre os clientes a Braskem, braço petroquímico da Odebrecht, e a construtora OAS. A Braskem fechou acordo de leniência com o Ministério Público na Lava-Jato e seus executivos fizeram delações premiadas. A OAS tenta negociar acordo. O nome da filha de Janot está listado como uma das advogadas dessas empresas em processos no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e na Justiça Federal. Para defensores de Gilmar, o pedido do procurador justificaria seu próprio impedimento, já que o CPC diz que as regras para juízes se aplicam ao Ministério Público.

Os dois lados trouxeram argumentos em sua defesa. A assessoria de imprensa de Gilmar divulgou nota afirmando que, no julgamento de Eike, por se tratar de um caso criminal, as normas de impedimento aplicáveis seriam as do Código de Processo Penal (CPP), e não as do CPC. O CPP traz regras mais limitadas, proibindo o juiz de julgar somente casos em que parentes ou cônjuges atuem diretamente como defensores.

Janot alega, por sua vez, que as regras do Código de Processo Civil, por serem mais recentes e mais amplas, devem ser replicadas para o impedimento na esfera criminal. O procurador chegou a mencionar no pedido de impedimento um voto do próprio Gilmar que chancelaria essa tese. A assessoria do ministro rebateu dizendo que o voto era justamente em sentido oposto, e que Janot teria cometido um erro ou citá-lo.

Já no caso da filha do procurador-geral, integrantes do Ministério Público sustentam que se trata de uma situação distinta. Isso porque Janot não lida diretamente com as pessoas jurídicas, que negociam seus acordos de leniência com a primeira instância do Ministério Público Federal (MPF) em Curitiba. Caberia à Procuradoria-Geral da República (PGR) e ao próprio Janot participar apenas das negociações das delações das pessoas físicas que citarem políticos com foro privilegiado. Outro argumento é que nenhum acordo foi fechado com a OAS até agora. Portanto, não haveria conflitos de interesse.

Interlocutores de ministros do STF contam, nos bastidores, que a aprovação das regras de impedimento do novo CPC, em 2015, teria gerado fortes divergências entre Gilmar e o ministro Luiz Fux, que presidiu a comissão de juristas responsável por elaborar o novo código. Pelas normas anteriores, o juiz é quem decidia declarar-se suspeito ou impedido de julgar um caso, por questões de foro íntimo.

Enquanto vigorou o código antigo, tanto Gilmar como Fux costumavam julgar causas patrocinadas pelo escritório de Sérgio Bermudes, contam advogados que atuam no STF. Gilmar só não julgava se sua mulher estivesse diretamente envolvida. A atuação de Fux era vista como um problema porque ele é amigo pessoal do advogado carioca há mais de 40 anos. Além disso, sua filha trabalhou na banca de Bermudes antes de ser nomeada desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio em 2016.

A gota d'água para Fux deixar de julgar casos do escritório de Bermudes, segundo relatos, foi uma entrevista concedida pelo advogado em 2013, dizendo que pagaria do próprio bolso uma festa para 150 pessoas em comemoração aos 60 anos do ministro. Entre os convidados estariam a cúpula do Judiciário e políticos como o ex-governador do Rio Sérgio Cabral, hoje preso. A notícia gerou grande polêmica e festa acabou cancelada.

Diante de pressões da imprensa, Fux passou a declarar-se impedido de julgar processos da banca de Bermudes, enquanto Gilmar continuou seguindo os procedimentos que adotava antes. Até que a comissão presidida por Fux criou, no novo CPC, as atuais regras de impedimento mais amplas, que passaram a valer em março de 2016. Daí em diante, Gilmar também passou a declarar-se impedido de julgar todas as causas patrocinadas pelo escritório do advogado carioca, tanto no STF como no TSE.

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4251, 10/05/2017. Política, p. A5.