Lula e Dilma sabiam de caixa dois e atuaram para manter esquema

Murillo Camarotto, André Guilherme Vieira e Maíra Magro

12/05/2017

 

 

Frequentador do Palácio do Planalto por mais de uma década, o publicitário João Santana disse em delação premiada que seus dois maiores clientes, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, conheciam em detalhes o sistema de pagamentos ilegais que financiou as últimas campanhas presidenciais do PT. Assim como a mulher, Mônica Moura, o marqueteiro garantiu ao Ministério Público Federal (MPF) que os dois ex-presidentes tinham ciência do uso indiscriminado de caixa dois e que chegaram a intervir para que a engrenagem financeira não parasse de rodar.

As delações do casal tiveram o sigilo retirado ontem pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin, relator da Lava-Jato na corte. Santana narrou em detalhes todo o processo que envolvia a contratação de seus serviços. Quando o cliente era o PT, as questões financeiras eram quase sempre tratadas com o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci, atualmente preso preventivamente em Curitiba. Segundo Santana, Palocci dizia com frequência que a palavra final sobre os pagamentos era do "chefe" - no caso, Lula.

Santana aproximou-se de Lula durante a crise do mensalão, em 2005. Meses mais tarde, foi contratado para comandar a campanha da reeleição. Ele relata que a condição para ser contratado era receber "por fora", de preferência no exterior. No pleito de 2006, Santana e a mulher disseram ter recebido R$ 24 milhões, dos quais R$ 10 milhões por meio de contabilidade paralela.

Lula, segundo ele, tinha pleno conhecimento de todo o processo, desde o valor total cobrado até a forma como os valores seriam pagos. Dos R$ 10 milhões "por fora", metade foi bancada pela Odebrecht e o restante, entregue em espécie por um emissário de Palocci, identificado como Juscelino Dourado. O dinheiro era repassado à Mônica em sacolas e caixas e roupas e sapatos, dizem os delatores.

A sistemática foi bem parecida na primeira campanha de Dilma, em 2010. Do valor acordado para a propaganda petista, boa parte ficou a cargo da Odebrecht - por meio de depósitos no exterior - e do emissário de Palocci. Dessa vez, no entanto, o casal demorou a receber o dinheiro, o que só aconteceu após a recorrer a Palocci, ao presidente do Instituto Lula, Paulo Okamotto, e, por fim, ao tesoureiro João Vaccari.

Dilma, aliás, teria se comprometido com Santana a "cuidar pessoalmente" do pagamento do marketing da campanha de 2014, a fim de evitar que os atrasos se repetissem. Aos procuradores, o publicitário disse que, em uma conversa ocorrida em junho de 2014 no Palácio da Alvorada, Dilma garantiu que os valores que seriam pagos "por fora" já estavam garantidos e que dessa vez os pagamentos sairiam mais rápido.

Santana relatou, ainda, que Dilma teria designado Mantega, "especialmente para isso". Segundo o marqueteiro, a presidente encarregou seu assessor Giles Azevedo para comunicar à Mônica da nova incumbência dada a Guido.

Ainda segundo o marqueteiro, Dilma lhe disse que não confiasse em Vaccari para coordenar os pagamentos. "Isso para evitar o que ocorrera na primeira eleição [2010], quando soube que parte do dinheiro destinado para o marketing teria sido desviado para um pagamento insólito e inesperado". Santana não explica, entretanto, que pagamento seria esse.

Os dois delatores também fizeram revelações sobre o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT). Mônica disse que Pimentel transportou R$ 800 mil em dinheiro vivo em um jatinho para pagar despesas da campanha de Patrus Ananias à Prefeitura de Belo Horizonte, em 2012. Ela explicou que, oficialmente, a campanha custou R$ 8 milhões, cifra que se somou a mais R$ 4 milhões em valores não oficiais.

Em nota, a ex-presidente Dilma Rousseff lamentou a demora na retirada do sigilo dos depoimentos e afirmou que Santana "caiu em contradição e apresentou falso testemunho". O advogado de Pimentel, Eugenio Pacelli, comentou que delatores falaram "mentiras desprovidas de qualquer elemento de prova". A defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que, "como foram prestadas em uma delação", as declarações de Santana e de sua mulher, Mônica Moura, "nada provam".

Em anexo da delação premiada de Mônica, ela afirmou que parte de uma dívida por serviços dos marqueteiros à campanha de Fernando Haddad à Prefeitura de São Paulo, em 2012, foi paga com intervenção de Lula.

Mônica afirmou que a campanha de Haddad foi destinatária de caixa dois intermediado por Palocci e por Santana, pagos pela Odebrecht e pelo executivo Flavio Godinho, da OGX, uma das empresas de Eike Batista. Godinho e Eike são réus em processo desdobrado da Lava-Jato e que envolve corrupção nas gestões do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB).

Segundo o anexo, Vaccari também participou das negociações, envolvendo R$ 30 milhões, sendo que R$ 20 milhões foram pagos "por fora", conforme diz o delator.

"Na campanha de Fernando Haddad à Prefeitura Municipal de São Paulo, em 2012, mais uma vez o valor da campanha foi negociado entre Mônica Moura e Antonio Palocci, o qual apresentou a exigência de sempre: parte do valor seria pago por fora, utilizando recursos não contabilizados recebidos pelo PT. Desta vez, diante do expressivo valor que seria pago por fora, Vaccari também participou das negociações. Foi acertado, como sempre, o valor oficial de R$ 30 milhões e o valor por fora de R$ 20 milhões", registra o anexo que integra o material entregue pelo casal aos investigadores.

De acordo com o anexo, Mônica foi orientada a procurar a Odebrecht, que arcaria com a maior parte do pagamento por fora, R$ 15 milhões. Mônica conversou com Hilberto Mascarenhas, do setor de propinas da Odebrecht, "acertou com ele a forma de pagamentos e colocou Fernando Migliaccio para operacionalizar os pagamentos". Migliaccio também é ex-executivo do grupo empresarial.

Segundo as informações de Mônica Moura, o esquema "era o mesmo de sempre", com entrega de dinheiro em espécie em hotéis ou flats, e que contou com R$ 5 milhões em dinheiro vivo. De acordo com ela, cerca de US$ 5 milhões foram depositados pela Odebrecht na conta da offshore ShellBill, e diziam respeito ao "pagamento do João Santana". Mônica também esclareceu que restou uma dívida de R$ 5 milhões que somente foi quitada posteriormente, em 2013.

Conforme a versão da delatora, "depois de muito cobrar de Antonio Palocci e de João Vaccari esta dívida, Mônica Moura foi avisada por João Vaccari que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tinha se comprometido pessoalmente a ajudá-los a receber o restante do valor. Vaccari disse que prepostos de Lula já haviam articulado com o empresário Eike Batista o pagamento e que agora, finalmente, eles receberiam".

Mônica disse também ter sido procurada, em 2014, pelo advogado Raphael Mattos, de Eike Batista, "preocupado dizendo que 'temos que fabricar um projeto fictício para justificar aquela transferência'. Temendo que a operação fosse descoberta, Mônica Moura realizou o projeto e entregou ao doutor Raphael Mattos, porém o serviço (objeto do projeto) jamais foi prestado".

Em maio de 2016, Eike Batista foi à força-tarefa de Curitiba e prestou depoimento espontâneo. Declarou ter recebido, em novembro de 2012, pedido do então ministro e presidente do conselho de administração da Petrobras, Guido Mantega, para que viabilizasse pagamento de R$ 5 milhões, em valores da época, no interesse do PT.

Na ocasião Eike admitiu ter feito contrato ideologicamente falso com a ShellBill para realizar o repasse de valores. Contou que, após uma tentativa frustrada, em dezembro de 2012, realizou, em abril de 2013, uma transferência eletrônica de US$ 2,35 milhões no exterior, entre uma de suas contas na Goldenrock e a conta do casal de marqueteiros na Shellbill.

O ex-prefeito paulistano Fernando Haddad (PT) refutou as acusações. O petista afirmou, por meio de uma nota, que "a suspensão da principal obra da Odebrecht em São Paulo (o túnel da avenida Roberto Marinho) no início de sua administração prova que Mônica Moura e João Santana mentiram". Na sequência, Haddad afirma que a documentação que comprova a suspensão da obra "está à disposição das autoridades". Raphael Mattos afirmou que não procurou Mônica com outro propósito que não fosse o de comprovar a prestação de um serviço efetivamente prestado. O advogado do empresário Eike Batista, Fernando Martins, disse que o assunto foi objeto de depoimento prestado pelo empresário quando foi voluntariamente ao MPF, ocasião em que apresentou "todos os esclarecimentos a respeito dos fatos". (Colaboraram Ricardo Mendonça, de São Paulo, e Marcos de Moura e Souza, de Belo Horizonte)

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4253, 12/05/2017. Política, p. A8.