Título: Cristina à sombra do autoritarismo
Autor: Vicentin, Carolina
Fonte: Correio Braziliense, 25/12/2011, Mundo, p. 20

Lei antiterrorismo e controle da venda de papel para jornais ameaçam colocar o país na contramão da democracia. Especialistas temem que governo tente silenciar a oposição

A América Latina saiu da era das ditaduras militares, mas não está a salvo da sombra do autoritarismo. Na última semana, a presidente Cristina Kirchner aprovou duas polêmicas leis que podem colocar em risco a liberdade de expressão na Argentina. Uma delas estatizou a Papel Prensa, única fábrica do país que produz papel para jornais, provocando a revolta dos dois maiores grupos de comunicação locais, o Clarín e o La Nación. No mesmo dia, em mais uma manobra rápida na Câmara dos Deputados e no Senado, ela autorizou a lei antiterrorismo, que, com um texto vago e aberto a várias interpretações, pode restringir manifestações sociais. Analistas creem que ainda é cedo para determinar o alcance das medidas. Se mal administradas, no entanto, elas ameaçam a democracia na região e podem transformar a viúva Kirchner em uma líder controladora, tal qual o venezuelano Hugo Chávez.

A briga entre Cristina e os grandes meios de comunicação argentinos ganhou ares de guerra em 2009, quando a presidente, em seu primeiro mandato, aprovou uma lei que limita o número de concessões de rádio e tevê para uma mesma empresa. Este ano, a disputa ficou ainda mais acirrada, com a presidente acusando a dona do grupo Clarín, Ernestina Noble, de ter adotado filhos de presos da ditadura. Exames de DNA desmentiram a história. No entanto, a raiva mútua entre as duas poderosas mulheres permanece. "Por um lado, há uma preocupação geral dos jornalistas e dos meios de comunicação, mas, por outro, há esse grande jogo de poder entre o governo e o Clarín", afirma Jorge Liotti, editor de política do jornal Perfil, outro veículo de grande circulação no país.

Liotti explica que o Perfil importa o chamado "papel-jornal" e não depende da fábrica estatizada por Cristina. Além disso, diz o jornalista, não há qualquer censura aos meios de comunicação. "Todos escrevemos com absoluta liberdade. Nós, inclusive, publicamos matérias críticas à lei, assim como o Clarín e o La Nación." Mesmo assim, há o temor de que a presidente esteja se aparelhando para exercer o controle sobre a imprensa. "É importante lembrar que a América Latina não tem uma tradição democrática tão forte. Sem dúvida, esse tipo de lei fragiliza as instituições do país e, consequentemente, a própria democracia", aponta Carlos Vidigal, pesquisador na Universidade de Brasília (UnB).

Incógnita Do lado da presidente, existe a justificativa de que a estatização da Papel Prensa tornaria a comunicação mais democrática, uma vez que o governo vai vender o insumo para qualquer veículo a um preço fixo. "É uma incógnita, esses novos meios, provavelmente, terão vínculos com o cristinismo", ressalva Vidigal. A lei antiterrorismo também tem uma justificativa dúbia: o governo afirma querer proteger o sistema financeiro de uma quebra, mas poderia, por exemplo, acusar a imprensa de estar aterrorizando a população, ao falar sobre o assunto. "Ainda não está claro como o governo vai usar esses novos poderes. Se as leis forem usadas para silenciar as vozes da oposição e da mídia, como ocorreu na Venezuela, isso pode ameaçar a democracia", avalia Shannon O"Neil, pesquisadora de América Latina do Council on Foreign Relations (CFR).

É possível que Cristina esteja tentando se blindar em um momento no qual precisa tomar uma série de medidas impopulares para manter a economia nos trilhos. O corte nos subsídios em setores estratégicos — que deverá fazer a conta de luz subir até 150% — poderia demolir parte do apoio popular que a presidente goza. "Ela adotou essa legislação drástica porque, agora, pode controlar o que os jornais publicam e, assim, o que as pessoas devem pensar", afirma Mario Sacchi, professor argentino de relações internacionais na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap). "Cada um pode dizer o que quer na Argentina, mas outra coisa é escrever o que quer", completa. Para Carlos Vidigal, a viúva Kirchner tem em mãos a mesma dúvida de outros governantes da região. "O dilema é sempre o mesmo: como conciliar governos populares com as liberdades democráticas", diz. Resta saber qual caminho ela seguirá.