ODEBRECHT NA VENEZUELA: COMEÇO COM CHÁVEZ

GUILHERME AMADO

31/07/2017

 

 

Proximidade de executivo com ‘el comandante’ criou relações políticas que levaram a financiamento ilegal de campanhas

 

 Era uma hora da manhã de uma noite de meados de 2006 quando tocou o telefone da casa em Caracas de Euzenando Prazeres de Azevedo, o diretor da Odebrecht para Venezuela. Do outro lado da linha, estava o ajudante de ordens de Hugo Chávez: el comandante queria que Azevedo fosse imediatamente ao Palácio Miraflores para uma conversa. Ao chegar lá, soube que não era nada urgente. Chávez só queria ouvi-lo sobre um projeto de casas populares. As convocações da madrugada se repetiriam em outras dez ocasiões, sempre sem urgência. A cada encontro, os dois teciam uma amizade que tornaria a operação na Venezuela uma das mais lucrativas da Odebrecht no mundo. Mas não só. A delação de Azevedo, ainda sob sigilo e obtida pelo GLOBO, revela que, ao se tornar amigo do chefe supremo da Venezuela por 14 anos, o executivo também passou a tecer uma poderosa rede de relações políticas, que financiou sem preconceito, mas sempre ilegalmente, figuras de peso da política venezuelana, de Nicolás Maduro a Henrique Capriles, passando por outros dez candidatos, nas eleições de 2006, 2008, 2012 e 2013.

Os termos da delação de Azevedo são bombásticos para a política venezuelana. Conforme revelou ontem a coluna de Lauro Jardim, Maduro é acusado de ter recebido US$ 35 milhões nas eleições de 2013. Ao procurar Azevedo, Américo Mata, seu coordenador de campanha, havia pedido ainda mais, US$ 50 milhões. Seu principal opositor até hoje, Capriles, também foi beneficiado. Em 2013, recebeu Azevedo em sua casa e obteve doação de US$ 15 milhões. Mas com nenhum dos dois Azevedo manteve a próxima relação que tinha com Chávez.

A história de Azevedo é única dentro da Odebrecht. Somente ele, à exceção de Emílio e Marcelo Odebrecht, tinha linha direta com um presidente da República. Para Chávez, era Azevedo, e não os Odebrecht, quem encarnava a construtora na Venezuela. A relação entre os dois começou em 1998, tão logo Chávez foi eleito. Antes mesmo da posse, Azevedo aproveitou uma viagem de Chávez a Brasília e o abordou em frente a seu hotel. Queria assegurar que o governo venezuelano assinaria o contrato da construção da linha quatro do metrô de Caracas com a construtora, que havia vencido a licitação. Chávez afirmou que, se não houvesse nenhuma ilegalidade, tudo seria mantido.

“Posso dizer que tivemos empatia desde o início e, com o tempo, as relações foram se estreitando. (...) Me tornei amigo pessoal do presidente. (...) Sempre demonstrei partilhar dos ideais e sonhos do presidente Chávez. (...) Em razão disto, eu tinha sempre as portas abertas”, contou o quase chavista, em delação, pontuando: “Não se pode esquecer que o presidente era um líder forte num regime em que ele dava ordens e todos obedeciam. (...) Chávez simplesmente determinava que eu fizesse a obra”.

A Odebrecht precisava apenas de uma ordem de Chávez para conquistar obras na Venezuela. Isso é possível porque a lei venezuelana permite a contratação de uma empreiteira sem licitação desde que haja um acordo de cooperação técnica com o país de origem da empresa. Brasil e Venezuela têm um desde 1992. A amizade entre Chávez e Azevedo permitiu que o executivo escolhesse o que fazer. Graças à parceria, a Odebrecht foi contratada para fazer, por licitação ou por contratação direta, 32 obras na Venezuela. As tais casas populares que Chávez quis discutir no meio da madrugada, por exemplo, foram educadamente recusadas.

Chávez gostava de explicitar publicamente a amizade com Azevedo. Brincava que o engenheiro era o “venezuelano mais brasileiro” que ele conhecia, numa inversão proposital. Em outubro de 2006, na inauguração de uma estação de metrô em Los Teques, capital do estado de Miranda, Chávez dirigiu-se a Azevedo:

“Euzenando, você já é venezuelano, já se nacionalizou, não? Se ainda não o fez...”.

A amizade rendia mais do que elogios públicos a Azevedo e obras para a Odebrecht. Segundo o delator contou aos procuradores brasileiros — seu depoimento foi em 15 de dezembro na sede do Ministério Público Federal em Aracaju —, ele pedia diretamente a Chávez a solução de pendências, a exemplo de atrasos em pagamentos.

“De imediato, ele telefonava ao ministro das Finanças ou do Transporte e ordenava que o pagamento de faturas fosse regularizado. Em poucos dias, os pagamentos eram feitos”, lembrou Azevedo na delação.

 

VISTA GROSSA PARA DOAÇÕES

Segundo Azevedo, Chávez nunca lhe pediu dinheiro nem doação de campanha. Ele diz que tampouco tratou de doações diretamente com ele. Mas isso não significava, entretanto, que o presidente não soubesse das doações ilegais feitas pela Odebrecht para candidatos do Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV), a legenda-mãe do chavismo.

“Tenho fortes razões para acreditar que ele recebia informações de que eu fazia contribuições a vários dos candidatos do PSUV. Não era uma contrapartida direta relacionada com obras, mas de fato existiu um ciclo contínuo de apoio financeiro a diversos candidatos do governo e uma frequente contratação da companhia para diversas obras ao longo dos anos”, explicou.

Com a doença de Chávez, os contatos com o amigo Azevedo foram ficando mais raros. Quando Maduro tomou conhecimento da doação para Capriles, houve um pedido expresso a Marcelo Odebrecht para que ele fosse retirado da operação. Azevedo permaneceria ainda por três anos como líder oculto da operação na Venezuela, atuando nos bastidores. No começo de 2017, após fazer a delação, ele e a família deixaram Caracas. No duro regime de Maduro, Azevedo não é mais amigo do rei.

O globo, n.30674 , 31/07/2017. PAÍS, p. 4