Necessidade de revisão técnica, e não política

Érica Gorga

30/05/2017

 

 

A defesa da infalibilidade do Ministério Público Federal (MPF), veementemente apresentada nos últimos dias por procuradores que se manifestaram em diversos veículos da mídia, tomou as proporções de “questão de fé”. No culto ao Ministério Público, o sr. procurador-geral da República argumenta que “não (...) corrompeu a política nacional”, que não erra, baseando-se sempre em provas e circunstâncias concretas, e que sua luta é apenas pelo futuro e prosperidade da sociedade brasileira.

Inovam os procuradores ao alegar que o Judiciário – no caso, o Supremo Tribunal Federal (STF) – não poderia rever os termos da delação do acordo celebrado com os srs. Joesley e Wesley Batista, a despeito da previsão legal de revisão judicial contida no caput e no § 8.º? do artigo 4.º?da Lei 12.850/2013. Argumentam que isso desnaturaria o instituto da colaboração premiada e poria em xeque o futuro de novas delações e da própria Operação Lava Jato.

Esquivam-se do cerne do problema. A lógica do instituto da colaboração premiada baseia-se e justifica-se na busca da revelação da hierarquia da organização criminosa para que se possa desbaratá-la com a identificação de seus líderes. O Estado dedicou três excelentes editoriais à delação dos irmãos Batista (22, 23 e 24/5) e especificamente apontou que os líderes de uma organização criminosa não podem receber o benefício do não oferecimento de denúncia, pelo que rege o artigo 4.º?, § 4.º,? I, da lei – argumento já constante no editorial de 23/4.

A primeira resposta do sr. Rodrigo Janot, publicada no portal UOL em 23/5, não aprofundou argumentos jurídicos, além de menções genéricas à “gravidade de fatos”, a “crimes graves em execução” e “dezenas de documentos e informações concretas”. O editorial de 24/5, em réplica à resposta de Janot, reforçou o questionamento técnico: “Não era necessária especial sagacidade à Procuradoria para atinar que o sr. Joesley era, de fato e de direito, o líder da organização criminosa. Nos vídeos gravados pela PGR, a fala do sr. Joesley é explícita a respeito de quem tinha a voz de comando na operação, definindo o que fazer e o que não fazer”.

Ora, esse é o ponto fundamental que põe em xeque a legalidade da decisão do procurador-geral, que, em vez de atacar a principal questão técnica suscitada pelo editorial (o que, por questão de responsabilidade, lhe competiria), em contratréplica publicada na Folha de S.Paulo de 25/5 novamente não enfrentou o ponto, limitando-se a discutir argumentos secundários entremeados por frases de efeito, em nítida defesa política das ações do MPF.

Vamos aos fatos. O pré-acordo de colaboração premiada foi assinado em 7 de abril e o acordo final, em 3 de maio. Portanto, o prazo de todas as tratativas, do início ao fim, durou menos de um mês – prazo exíguo para a apuração técnica séria e cuidadosa dos fatos e das provas apresentadas e produzidas.

A cláusula 4.ª do pré-acordo de delação estabelecia que as “medidas premiais” avaliariam a quantidade, a gravidade, o período dos ilícitos praticados, os benefícios auferidos por Joesley Batista e a repercussão social e econômica dos fatos, em atendimento aos critérios listados pelo artigo 4.º, § 1.º,? da Lei 12.850 para a concessão do benefício premial. Assim, difícil é entender como, de posse de todas as informações que surgiram no período entre o pré-acordo e o acordo definitivo, envolvendo corrupção de quase 2 mil políticos, pôde Janot concluir que os srs. Joesley e Wesley não eram líderes da organização criminosa. Quem, então, o seria?

Não foi a quantidade de corrompidos por eles grande e grave o suficiente? O R$ 1,4 bilhão estimado na distribuição de recursos ilegais, incluindo propinas, não atenderiam ao critério da repercussão econômica e social do crime? O período de tempo dos delitos, que em dez anos possibilitaram o crescimento estrondoso do faturamento do grupo, seria, então, curto? Os benefícios bilionários auferidos teriam sido pequenos? Seriam os srs. Joesley e Wesley apenas vítimas do sistema de corrupção política – como sua nota de desculpas levou a crer –, sem nenhum poder para freá-la? Teriam sido coagidos a praticar crimes?

No caso do petrolão, a identificação dos líderes da organização criminosa é obscura porque os ilícitos foram perpetrados via sociedade de economia mista (Petrobrás), cujo controle é exercido pela pessoa jurídica da União Federal. Logo, questiona-se quem seriam os líderes políticos que controlavam a empresa e a orientavam para a realização dos crimes: Lula, Dilma ou os ministros da Fazenda do governo do PT? Eis a questão controvertida em discussão nos processos criminais em Curitiba.

Mas no caso da JBS tal problema não se coloca. Trata-se de sociedade privada, com poder de controle acionário bem definido nas mãos das pessoas físicas dos irmãos Batista. Os presidentes do conselho de administração e da diretoria da empresa eram os próprios Joesley e Wesley – este último continuando no comando do grupo empresarial. Tivessem Wesley e Joesley dito “não”, os crimes não teriam sido cometidos. Não reconhecer isso é negar a estrutura de controle do grupo, regrada pelo direito privado brasileiro (Lei 6.404/76, artigo 116). O controle das decisões e dos atos criminosos no caso da JBS simplesmente não se encontra na esfera política, tal como ocorre na Petrobrás.

As justificativas políticas apresentadas por Janot levam a crer que nada seria revelado à sociedade se ele não aceitasse a condição da “imunidade criminal total” para os irmãos Batista. Tal argumento é retórico e não supre o requisito legal da necessidade de análise e fundamentação sobre o porquê de o colaborador não se configurar como líder da organização criminosa, que é fundamental para a aplicação do benefício maior da ausência da denúncia criminal. É o que se espera que o STF analise de maneira técnica, e não política.

 

O Estado de São Paulo, n. 45150, 30/05/2017. Espaço aberto, p. B2