O direito derradeiro

HUDSON CARVALHO

16/07/2017

 

 

 

O caso do bebê inglês Charlie Gard reacendeu o debate sobre a morte digna. Essa é uma discussão abrasada e pautada em dogmas religiosos, filosóficos, culturais, éticos e pessoais. Para muitos, só cabe a Deus o destino de nossa presença. E há os conflitos deontológicos dos médicos que se submetem ao juramento de Hipócrates.

Desde os primeiros tempos, a morte induzida causa estranhamento em todas as civilizações, mas só se transformou em tabu com os adventos do judaísmo e do cristianismo. Na Índia, sacrificavam-se velhos e doentes às margens do Rio Ganges. Na militarista Esparta, crianças nascidas com deficiência física — ineptas para a guerra — eram atiradas do Monte Taigeto, segundo relatou Plutarco em “Vidas paralelas”. “Se a morte fosse um bem, os deuses não seriam imortais”, liricara a poetisa Safo de Lesbos, cerca de 600 anos a.C.

No ano passado, o Canadá regulamentou o acesso à eutanásia para doentes terminais, por exigência da Suprema Corte, que considerou inconstitucional uma lei que a penalizava. O Uruguai tornou-se o primeiro país a legislar sobre a temática, em 1934, contemplando o “homicídio piedoso”, que assegurava aos juízes a possibilidade de inocentar o autor de homicídio por motivos misericordiosos. A católica Colômbia acolheu, em 1977, decisão da Corte Constitucional assemelhada à sancionada no Uruguai. Eutanásia (eu/bom e thanatos/morte) significa “boa morte” em grego, e consiste em prematurar a morte de enfermo irreversível ou terminal, a pedido dele ou de familiares, em função da incurabilidade da doença, da ineficácia do tratamento ou do atroz padecimento. Já a eutanásia passiva, designada como ortotanásia, limita-se à interrupção do tratamento ou dos procedimentos que prolongam a vida do doente. E o suicídio assistido apoia-se em pôr ao alcance do combalido alguma droga fatal que o próprio administra.

A Holanda foi vanguardista em adotar a eutanásia e o suicídio assistido, em 2001. Seguiu-se a Bélgica, com uma lei que alcançava, inclusive, doentes não terminais; licenciosidade revogada posteriormente. Na Suíça, prevalece uma interpretação da Corte Federal sobre o direito de morrer das pessoas. Por acolher também estrangeiros, tornou-se, internacionalmente, conhecida quando se trata de suicídio assistido. Nos Estados Unidos, os estados do Oregon, Washington, Montana, Vermont e Califórnia aprovaram o suicídio assistido.

No Brasil, a eutanásia e os procedimentos correlatos são criminalizados. Escassas tentativas de tratar do tema não avançaram no Congresso. Muitos, entretanto, consideram inexorável uma abordagem efetiva sobre o assunto, em um mundo com expressivos avanços na esfera dos direitos civis e em um futuro que se avizinha com populações mais envelhecidas.

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Hudson Carvalho é jornalista

O globo, n. 30659, 16/07/2017. ARTIGOS, p. 21