A voracidade da reforma da Previdência

26/12/2016

 

 

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Alterações nas regras previdenciárias em decorrência de mudanças demográficas são inevitáveis, já que o envelhecimento populacional gera impacto profundo na economia e na gestão pública como um todo. Mas, no caso brasileiro, a justificativa e a voracidade da PEC 287 têm gerado grande inquietação desde que seus termos foram anunciados pelo governo.

A reforma proposta não decorre de mudanças demográficas sensíveis, mas apenas do desejo de se reduzir o desequilíbrio fiscal público. Mas pautar um ajuste fiscal por meio de mudanças nas regras da seguridade social, antes de se tentar combater alguns privilégios que se verificam no serviço público, pode acentuar ainda mais os problemas sociais que o Brasil enfrenta e incendiar a divisão política perceptível no país. Sobretudo, quando da reforma são expressamente excluídos os políticos e os militares, categorias historicamente privilegiadas.

Além disso, o discurso de déficit da Previdência Social não é compatível com a Emenda Constitucional 93, que ampliou o percentual de desvinculação de recursos da União (DRU). Se a Previdência não tem recursos para se manter, por que o governo trabalhou para possibilitar que 30% da arrecadação da União relativa às contribuições sociais possam ser transferidas para outros órgãos até 2023?

A voracidade das medidas também merece reflexão. Caso aprovada a PEC da Previdência, inviabilizada estará qualquer pretensão de se receber aposentadoria pelo valor do teto do INSS. Pelas novas regras, para se aposentar aos 65 anos recebendo hoje R$ 5.189,82, o trabalhador precisaria entrar no mercado de trabalho aos 16 anos recebendo salário igual ou superior a este valor, sem jamais ter suspendido suas contribuições.

Comentou-se que o governo teria enviado proposta muito arrojada para o Congresso Nacional objetivando ter espaço para negociação durante o processo legislativo. Certas questões, contudo, parecem claramente inegociáveis — como a não cumulatividade de pensões ou de pensão e aposentadorias e algum aumento da idade mínima para aposentadoria estão entre elas. A fórmula para calcular o número de contribuições indispensáveis para a aposentadoria e a homogeneização das condições para homens e mulheres se aposentarem também parecem pontos passíveis de modificação.

É imprescindível constatar que o fator cultural que justificou a desigualdade na aposentadoria de homens e mulheres permanece presente. Segundo dados recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), as mulheres dedicavam, em 2013, 20 horas em média ao cuidado dos filhos, limpeza da casa e outras atividades, enquanto os homens reservavam cinco horas, sendo que somente 45% dos homens contra 85% das mulheres tomavam conta dessas tarefas. A terceira jornada ainda é uma realidade, mas é possível imaginar um recuo do governo para manter a diferença entre homens e mulheres ou reduzi-la para dois ou três anos.

 

*Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho é professor de Direito Trabalhista na Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV/Eaesp N. da R.: Paulo Guedes, excepcionalmente, não escreve hoje

O globo, n.30457 , 26/12/2016. ARTIGOS, p. 15