Título: Cairo em chamas
Autor: Tranches, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 04/02/2012, Mundo, p. 20

Manifestantes enfrentam as forças de segurança e incendeiam um dos prédios do governo do Egito. Cinco pessoas morrem na capital e na cidade de Suez, durante protestos pelo fim do regime militar

Os violentos embates entre manifestantes e forças de segurança mataram cinco pessoas e inflamaram as ruas da capital do Egito pelo segundo dia consecutivo desde a tragédia em Port Said, na qual 74 pessoas morreram em confrontos após uma partida de futebol. No caos que tomou o Cairo, um prédio do governo foi incendiado, aumentando a pressão sobre o Conselho Supremo das Forças Armadas (CSFA) — a junta militar que controla o país desde a queda de Hosni Mubarak, há quase um ano. Manifestantes e vertentes políticas exigem a saída do comando e questionam a habilidade dos militares de governarem até as eleições presidenciais, em quatro meses.

As mortes ocorreram no Cairo e em Suez. Dois manifestantes morreram ontem após inalar gás lacrimogêneo lançado pela polícia. Na noite anterior, foram registradas três vítimas, entre elas um policial que não resistiu aos ferimentos, após ser esmagado entre um veículo e uma viatura. Desde quinta-feira, 1.482 pessoas ficaram feridas.

Os protestos no Cairo foram realizados perto do prédio do Ministério do Interior e na Praça Tahrir, palco das demonstrações da Primavera Árabe. Agências de notícias relataram que os manifestantes romperam uma barreira de proteção do edifício. Na tentativa de dispersar a multidão, a polícia respondeu com gás lacrimogêneo e com tiros para o alto. O prédio incendiado pertencia à Autoridade Tributária. Uma fonte da segurança local relatou à France-Presse que o local foi invadido por "estranhos", mas as causas do incidente não haviam sido determinadas. No leste da cidade, homens armados atearam fogo a um posto da polícia e libertaram os detidos.

As demonstrações foram organizadas por grupos pró-democracia e levaram mais de 1 milhão às ruas da capital, segundo o diretor do Instituto Andalus para Estudos da Tolerância e Antiviolência no Egito, Ahmed Samih. "As pessoas nas ruas pedem aos militares que deixem o poder e o país. Essa situação deve continuar, assim como os protestos", afirmou ao Correio Samih, em referência à insatisfação no levante com relação ao CSFA, comandado pelo marechal Mohammed Hussein Tantawi. O órgão tornou-se encarregado da transição democrática, mas a demora na efetivação das mudanças criou tensão no país. Os últimos eventos lançaram holofote sobre a inabilidade do conselho de seguir no comando. "Isso abre o caminho para demandas, como a antecipação das eleições presidenciais e para que os militares voltem aos quartéis", afirmou ao Correio o cientista político Walid Kazziha, da American University, no Cairo.

Insatisfação O analista presume que o cenário no Egito possa fazer com que liberais e jovens ativistas retomem o controle nas ruas e comandem um movimento, em escala nacional, de completa insatisfação com os militares. Descontentamento que pode alcançar a nova maioria política moldada pelas eleições legislativas, que conferiram 71% dos votos aos islâmicos moderados ligados à Irmandade Muçulmana e aos extremistas salafistas.

Para Samih, esse sentimento começa a ser notado no Egito. Representada no Parlamento pelo Partido Liberdade e Justiça, a Irmandade Muçulmana acusou os militares de estarem por trás da tragédia em Port Said por meio de uma "mão invisível". As suspeitas são de que as forças de segurança no estádio tenham permitido a entrada de objetos usados como armas e não interferido para conter a violência. A atitude teria sido motivada pela vingança contra seguidores do time Al-Ahly (Cairo), que desempenhou papel crucial nas manifestações pelo fim de Mubarak. Os torcedores, conhecidos como "ultras", entraram em choque com os rivais do Al-Masry após a derrota de seu time. Para Samih, o posicionamento da Irmandade não impediu que a multidão voltasse às ruas. O analista diz que há grande distância entre o que tem sido feito no Parlamento e o que o povo quer. "Os políticos estão muito distantes do que as ruas esperam."

Rússia bloqueia resolução contra Síria Pelo menos 70 pessoas morreram em atos violentos na Síria ontem, dia em que se lembrou o 30º aniversário do massacre de Hama. Em Homs, 25 civis foram mortas no fim da noite, vítimas de disparos de morteiros no bairro de Al-Khadiliya. No nível diplomático, a Rússia bloqueou um projeto de resolução da ONU. Na nova versão do texto, o Conselho de Segurança não pede que Al-Assad deixe o poder, nem menciona um embargo de armas nem sequer novas sanções. Mas "apoia plenamente (...) a decisão da Liga Árabe de 22 de janeiro de 2012 de facilitar uma transição política dirigida pelos próprios sírios". Em Hama, manifestantes usaram preto e marcharam em homenagem às pessoas que morreram em 1982 no massacre ordenado por Hafez, pai do presidente Bashar Al-Assad. Entre 10 mil e 40 mil pessoas morreram durante a campanha repressiva, que durou 27 dias.

Policiais de braços cruzados

Em meio à complicada reconstrução das instituições após o vendaval da Primavera Árabe, que derrubou em janeiro de 2010 o ditador Zine El-Abidine Ben Ali, a Tunísia se via às voltas com uma greve dos policiais na capital, Tunis. "Não à greve, sim à responsabilidade", era um dos lemas estampados em cartazes exibidos nas ruas por moradores contrários à paralisação. Primeiro país a ser afetado pela onda de revoltas populares contra os regimes autoritários do mundo árabe, a Tunísia foi também pioneira no estabelecimento de novas instituições. O sindicato que representa os integrantes das forças de segurança reivindica proteção do governo aos agentes e melhores condições de trabalho, além de aumento salarial. "As pessoas nos tratam como criminosos, nos molestam na rua, mas nossas demandas são puramente profissionais", desabafou o sindicalista Adel Jebali.