Título: O peso da rejeição
Autor: Sassine, Vinicius
Fonte: Correio Braziliense, 07/02/2012, Brasil, p. 10

Pacientes diagnosticados com o mal de Chagas reclamam da discriminação no mercado de trabalho. Estudo revela que as perdas ao país em razão da doença chegam a 1,3 bilhão de dólares

Goiânia (GO) — Ninguém fala sobre a doença de Chagas no canteiro de obras onde Divino* trabalha. O assunto é um tabu, por uma razão simples: o patrão não quer saber de pedreiros doentes, muito menos de Chagas, debilitados por arritmias cardíacas. "Sempre faço minhas consultas embaixo do pano", diz Divino.

Os profissionais de saúde que o atendem sabem do cotidiano de discriminação. Os atestados médicos emitidos aos pacientes do ambulatório de Chagas do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (UFG) não trazem a verdadeira razão das consultas. Há apenas uma denominação genérica, "atendimento médico", um pedido dos pacientes para evitar a rejeição no trabalho.

Divino vive na sombra no prédio de 20 andares erguido com sua ajuda. Apenas um colega de trabalho, também com o mal de Chagas diagnosticado, sabe de seu problema de saúde. É a única pessoa com quem conversa sobre o assunto no canteiro de obras. "Se ouvirem esse nome, Chagas, na área de construção civil, a gente não passa nem perto de ser contratado. Sou demitido em 24 horas se me descobrirem."

A cidade onde Divino nasceu, São Félix do Coribe (BA), é a "terra dos barbeiros", como ele conta. O pai e três irmãos foram infectados pelo protozoário causador da doença — um deles morreu subitamente, com uma parada cardíaca.

O Correio esteve na cidade de Divino. O local parece ter parado no tempo. Os barbeiros continuam invadindo pequenas propriedades rurais, o combate aos vetores está paralisado desde 2006, casas de adobe e pau a pique compõem os cenários na zona rural. A Fundação Nacional de Saúde (Funasa) chegou a firmar um convênio com o município, no valor de R$ 750 mil, para a melhoria dessas casas. Nenhum centavo foi depositado e o convênio terminou em dezembro passado.

Divino é herdeiro de uma doença associada à pobreza. Sabe há 20 anos que tem mal de Chagas,sofre com uma arritmia cardíaca, sente fraquezas que o incomodam no trabalho. "Se eu falar que tenho isso aí, estou condenado." A iminência da demissão só não é mais assustadora para o pedreiro, pai de duas filhas, do que o temor da morte. "Tenho medo do que aconteceu com meu irmão."

Impacto econômico A doença de Chagas tem um impacto econômico que vai além dos custos para os serviços de saúde pública, principalmente em função dos afastamentos do trabalho — o risco que assombra Divino. A pedido do Correio, a DNDi, uma organização sem fins lucrativos de pesquisa de medicamentos para doenças negligenciadas, compilou estudos recentes sobre o impacto econômico do mal de Chagas.

A perda acumulada de salários e de produtividade industrial no Brasil, em decorrência do afastamento de trabalhadores com a doença, é de 1,3 bilhão de dólares (R$ 2,2 bilhões), conforme um estudo de 2006. Em toda a América Latina, segundo um relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 2010, perdem-se 752 mil dias de trabalho por ano em função da morte prematura ou do afastamento de trabalhadores doentes. "A doença tem um custo anual de 426 mil anos de vida perdidos por incapacidade", conclui o relatório.

Dados oficiais do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) apontam gastos de R$ 9,2 milhões com o pagamento de aposentadorias nos últimos cinco anos. Foram registrados 10,8 mil casos da doença no período, um número subestimado que pouco reflete o contingente de doentes crônicos.

O mal de Chagas, entre as doenças tropicais na América Latina, é a principal causa de incapacidade de adultos jovens para o trabalho. O mal tem um grande impacto para o Sistema Único de Saúde (SUS). A estimativa é de que o custo com um paciente, independentemente da evolução para a fase crônica, varia de R$ 1.960 a R$ 94.873, sendo a média de R$ 6.646.

Como existem três milhões de doentes crônicos, conforme a estimativa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e como a maioria deles depende do SUS, o mal de Chagas pode custar, em média, R$ 19,9 bilhões para a saúde pública. "A morbidade decorrente da fase crônica resulta em um alto impacto social e econômico, causando desemprego e diminuição da capacidade produtiva", resume Isabela Ribeiro, gerente do programa clínico em doença de Chagas da DNDi.

PRECONCEITO Divino ouve o parecer do médico sobre a situação atual da doença: anonimato para não correr o risco de ser demitido no canteiro de obras

* Nome fictício a pedido do entrevistado